sexta-feira, 5 de março de 2021

O vinho, a cóvide19, (e uma marca de fertilizantes...)

 


O Asdrúbal é um enólogo beirão que sonha criar nas suas vinhas do Tortosendo o melhor vinho do mundo. À falta de curso de Enologia na Universidade da Beira Interior, com muita pena sua teve que ir licenciar-se para a UTAD, Universidade de Trás os Montes e Alto Douro, mas nunca deixou de sonhar com a introdução das Ciências Agrárias na oferta formativa da UBI. Ultimamente tem tentado por todos os meios, e recorrendo às pessoas e instituições mais influentes, a introdução da Agronomia na Covilhã, até porque, desde que iniciou um importante projeto de investigação vitivinícola na sua herdade, precisa de massa cinzenta que o apoie. Um projeto assim tão ambicioso requer o suporte multidisciplinar de uma grande universidade, desde a bioquímica dos fertilizantes e dos pesticidas à seleção e manipulação genética das vides, passando pelos processos físico-químicos do vinho, pela mecânica e eletrónica dos dispositivos de controle de produção, dos sistemas de rega, etc, etc… O empirismo e o conhecimento ancestral passado de boca a boca, quantas vezes analfabeto, ficou parado no tempo. O futuro é uma cátedra, a ciência no seu expoente máximo. É nesta linha que passa o comboio onde o Asdrúbal viaja.
Faz hoje uma semana o Asdrúbal passou pelo André, o gago, e, estando os dois de máscara, nem o conheceu. São amigos de infância, do Tortosendo, onde ambos nasceram, mas há muito que não se viam. O André, o gago, foi mais perspicaz e reconheceu logo o amigo, saudando-o gaga e efusivamente. O Asdrúbal correspondeu com animação e falaram as palavras normais de um reencontro, e depois mais sobre a vida de cada um, o Asdrúbal sobre o seu projeto vitivinícola, o André sobre um zoo de animais exóticos que explorava em Alcains, que tinha desde búfalos a cangurus, passando por girafas, zebras, elefantes, diabos da tasmânia, etc…, e às duas por três o André disse, na sua gaguez, que tinha cócóvide19. O Asdrúbal, que vivia vidrado na obtenção da vinha perfeita, ao soar-lhe o Cócóvide19 a uma marca comercial de estrume para adubar vinhas ficou super entusiasmado, imaginando que esse tal de cócóvide19 seria um fertilizante feito à base do esterco dos vários animais exóticos do zoo do André. Perguntou imediatamente quais eram exatamente os animais e quantos de cada espécie, e mais ou menos que quantidade de fezes é que cada um produzia, para tentar desse modo quantificar mentalmente a contribuição de cada um para o conjunto fecal. Enquanto o André ia respondendo e estranhando aquelas perguntas tão técnicas e inesperadas, o Asdrúbal formava mentalmente a composição do esterco na sua cabeça.
De repente o telemóvel do André tocou, era alguém a avisá-lo que já estava atrasado. Despediu-se prematuramente, sem abraço, por respeito às distâncias. A conversa acabou sem que o mal-entendido que enchia de merda a cabeça do Asdrúbal ficasse esclarecido. Se a conversa tivesse continuado não é crível que, mais tarde ou mais cedo, o Asdrúbal não se apercebesse da sua hilariante falha de interpretação. Mas tendo o André saído disparado na sequência do telefonema não houve mais conversa, e o mal-entendido continuou de pedra e cal na cabeça do Asdrúbal. O mal-entendido e dois ou três sacos de cócóvid 19, para experimentar. Só pensava nisso. Ia adormecer a pensar nisso, e, na manhã seguinte, mal abrisse o sol, pegaria no jipe e lá iria ele a correr para Alcains, para trazer os sacos.
A partida extemporânea do André depois de atender o telemóvel foi tão rápida que o Asdrúbal nem tempo teve de lhe pedir o número. Mas também não interessava, havia de se desenrascar. Depois de uma noite certamente mal dormida, de ansiedade, era só aparecer lá em Alcains, e, como diz o povo, quem tem boca vai a Roma. Não havia de faltar quem lhe indicasse onde é que ficava o zoo do André.
À medida que ia conjeturando e pensando nos passos a dar, completamente nas nuvens com tão inesperada oportunidade, o Asdrúbal começou lentamente a cair na real e a questionar-se, refreando gradualmente o entusiasmo. Estranho, pensou, nunca ouvira falar num zoo em Alcains. No Badoca Safari Park, sim, mas esse ficava no Alentejo e tinha uma variedade relativamente modesta de espécies. Elefantes, diabos da Tasmânia, em Alcains?! Lentamente começou a digerir essa coisa anormal do zoo em Alcains e começou finalmente a usar a cabeça que não fosse apenas para meter merda lá dentro. Como é que se consegue rentabilizar uma infraestrutura daquelas em Alcains?! Só os elefantes mamam comida e dinheiro que nem é bom…
Inquieto, foi ter com a mulher, a Laura, e contou-lhe tudo. Intrigada, ela perguntou:
- ele disse-te que tinha o quê?
- cócóvide19
- e tu achaste que isso era estrume para vinhas?
- claro, cócó mais vide, queres que pense o quê?!...
- cócó tens tu na cabeça, ó parolo, não vês que o gajo é gago, que duplica a sílaba?!
O Asdrúbal bateu com a palma da mão com toda a força na testa e sentiu-se tão burro que só lhe faltou zurrar. Ainda bem que não tinha ido a Alcains fazer figura de parvo…
A mulher continuou:
- gago e mentiroso, o filho da mãe, nem zoo nem cóvide, é tudo treta…
O Asdrúbal anuiu que sim com a cabeça, e não se falou mais nisso.
Mas, o que parecia ter sido um episódio para esquecer revelou-se afinal o princípio de uma história de sucesso. Inspirado no mal-entendido do cócóvide e no fertilizante do zoo de treta do André, o Asdrúbal decidiu focar-se na formação do estrume perfeito, para produzir uvas inigualáveis. Começou a pesquisar sobre as fezes de animais exóticos e a compor misturas teóricas, a estudar os componentes e proporções relativas na mistura, sempre na senda da melhor fórmula. Passando da teoria à prática, e porque não tinha como fazê-lo sozinho, solicitou o apoio do zoo de Lisboa que lhe forneceu toda a matéria fecal necessária às experiências. Só para o ano, na próxima vindima, é que terá resultados, mas já propôs ao zoo de Lisboa uma parceria comercial a iniciar quando atingir a composição definitiva do produto. O zoo agradece, obviamente, nunca pensou ganhar tanto com a evacuação dos bichos. É também uma oportunidade de ouro para a afirmação da UBI, que, através do seu departamento de marketing, ficou incumbida de publicitar a nova marca de fertilizantes para a vinha e de lançá-la no mercado. E já começou a preparar tudo com antecedência, até já tem slogan publicitário: “Cócóvide19, vinha mesmo a calhar”.

Gondri