sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A tese de Leonel Tó


 Assim que soube que Jorge Jesus deixava o Flamengo e vinha para o Benfica, Leonel Tó, estudante do último ano do curso de Ciências do Desporto da UBI (e benfiquista como eu), ficou eufórico. Se até aí não imaginava qual seria o tema da sua tese final de curso, depressa se decidiu pela análise da época demolidora do Sport Lisboa e Benfica, com Jorge Jesus ao leme. 
Por azar Leonel Tó apanhou covid e ficou de quarentena, com tempo para tudo. Diz ele que um dos sintomas do vírus foi acometê-lo de uma onda camiliana de inspiração. Aliás, sendo fiel à matemática, esmerou-se na exatidão e disse que foi uma onda dois terços de camiliana, porque, se o Camilo precisou de quinze dias para escrever Amor de Perdição, ele só precisou de dez para escrever a tese. Aproveitou a estranha sintomatologia que o vírus lhe provocou e escreveu, em velocidade de foguetão, capítulo após capítulo, e só no fim é que decidiu o título: “A jogar o triplo”. A tese, que era uma abordagem técnico-tática dos métodos de treino, da psicologia motivacional, de todas as componentes da estratégia do mestre Jesus, era para entregar no fim do ano. No entanto, aproveitando o tempo livre e a oportunidade única que era aquela vertigem criativa, escreveu-a com grande antecedência. Usando métodos estatísticos - nada de premonições, tudo científico -, Leonel Tó, além das vitórias certas na final da supertaça, na taça da liga e na taça de Portugal, tinha já uma estimativa da diferença pontual que o Benfica cavaria relativamente ao segundo quando o campeonato terminasse. E no fim era só fazer os ajustes, porque, em boa verdade, só bruxo é que sabia números exatos. As competições internas eram um passeio, a sério só mesmo a Champions. Contra os tubarões da Europa era outra loiça. Aliás, esse capítulo da tese ficou apenas alinhavado, previu a chegada aos quartos de final e deixou grande parte por escrever. Não se aventurou além dos quartos porque, contra plantéis ultramilionários, as chances eram poucas ou pelo menos imprevisíveis. Os cem milhões que o Benfica gastou este ano em contratações garantiam sucesso nas lides domésticas, mas lá fora cem milhões eram uma bagatela, era lá que estavam os melhores e simultaneamente os jogadores mais caros do planeta. Por isso, ou a sorte do jogo se compadecia do glorioso ou não passava dos quartos. Apesar de tudo, a esperança de chegar mais longe era a última a morrer…
A primeira diarreia mental de Leonel Tó, e até intestinal (sim, porque os nervos metem-se em tudo…), foi quando o Benfica caiu prematuramente na Champions aos pés dos coxos do PAOK da Grécia. Vergonhosamente, nem à fase de grupos conseguiu chegar. Nem o prestígio nem o dinheiro da Champions, foi tudo à vida. Isto depois de um monumental investimento pensado para ser amortizado em grandes noites europeias. Leonel Tó passou dois dias com as nalgas sentadas na sanita, numa soltura medonha. Deprimido, percebeu logo que o capítulo sobre a Champions, apenas alinhavado a pensar na hipótese de o Benfica superar a meta dos quartos, ia afinal ser a vergonha da tese. Chorou lágrimas de águia ferida e engoliu em seco as piadas do costume vindas da concorrência verde e azul e branca, “chupa lampião”, “em que grupo é que vais jogar na fase de grupos, no grupo I da tabela periódica?!... atenção que o sódio e o potássio são fortíssimos!”. E outras piadolas para tirar o ânimo. Leonel Tó não teve outro remédio senão conformar-se. Escreveu na tese que a eliminação da Champions foi apenas um percalço, que a culpa tinha sido da aleatoriedade do futebol que permitia que nem sempre ganhasse o melhor. Nem a genialidade de Jorge Jesus conseguia sobrepor-se às vicissitudes do futebol, concluiu. 
Mas chegou Dezembro e outra disenteria, para não dizer caganeira. A fé que Leonel Tó tinha em Jesus levava outro rombo com a derrota do Benfica na supertaça, e ainda por cima aos pés do Porto. Mudava o ano, e, logo em Janeiro, meias finais da taça da liga e outro descalabro, o Benfica via Braga por um canudo. Já era o terceiro desastre, Leonel Tó teve finalmente um baque muito sério de desesperança. Como se isso não bastasse, estamos em Fevereiro e o campeonato parece um filme de terror, o glorioso vai em quarto, a uns impensáveis onze pontos do Sporting, e, da maneira como param as modas, a tendência é para aumentar o fosso. Leonel Tó tem cólicas e enjoos e só a sua grande consciência de género é que o impede de acreditar que está grávido. A tese já era. Vai ter que pensar noutro assunto ou então fazer uma errata geral e alterar o título cento e oitenta graus para “A jogar um terço”. Mal empregado tempo que passou a redigir o milagre benfiquista, lamenta-se. A indignação é tanta que até já se vira para Meca cinco vezes por dia, e pouco falta para se converter ao Islão. Mesmo com Jesus a treinador e Deus a adjunto não há cristianismo que resista. Mais valera ter lá o Maomé e o Alá. “Há lá paciência para tanta incompetência, há lá, há lá…”, grita o Leonel, qual muçulmano em oração. E não se cansa de rogar pragas ao Jesus, “aquele bandido arrasou-me a tese!”.
Leonel Tó não está bem, dizem os amigos mais próximos que está à beira de ser internado. Maldiz Jesus e os apóstolos, o apóstolo Pizzi, o apóstolo Otamendi, o apóstolo Rafa, o apóstolo Drawin Nuñez, enfim, todos, não escapa um. Cansado de ser gozado até já pensou fazer uma plástica para mudar de cara e ninguém o conhecer. E diz amiúde que quer ir para a ilha. O futebol é fértil em reviravoltas, dizem-lhe os psicólogos que o querem animar. Mas a onze pontos dos leões, e ainda por cima a jogar mal que fede, Leonel Tó já não acredita no Pai Natal. O campeonato já foi ao charco e Jesus já passou de bestial a besta. E esta crónica fica por aqui, porque, benfiquista como sou, estou farto de escrever tristezas…

Gondri


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O herbochorómetro e o advento do insetivorismo.

 


Aludi na crónica anterior (“A rir desde mil novecentos e trocópasso…”) à ideia, não tão estapafúrdia como parece, de que um dia se chegará à brilhante conclusão de que, afinal, as plantas também têm sentimentos. E hoje vou-vos apresentar o Tino Leonel, que, pelo que sei, é o maior entusiasta da ideia, além de que tem em curso importantes estudos e projetos experimentais que visam comprovar essa tese.
Segundo Tino Leonel as árvores choram quando são podadas. Dito de outro modo, choram quando levam uma poda. A comunidade científica optou por rir de Tino Leonel, dizem que ele é maluco. Mas ele insiste que é verdade e já pôs a comunidade vegan em sobressalto. Se as árvores choram é porque tem sentimentos, e não apenas sentimentos leves e superficiais, é porque têm sentimentos profundos. E quem diz as árvores diz as plantas em geral, os vegetais, tudo o que nasce e morre como os animais. A casa de Tino Leonel parece um jardim botânico, tem plantas em todos os cantos, e até tem à beira da cama uma camedórea-elegante que lhe acompanha os sonhos. E diz com palavras certas que as suas plantas são todas sentimentalonas, sabe-lhes o nome, uma a uma, faz-lhes festas e beija-as a cada passo, e sente da parte delas o mesmo carinho e o mesmo amor. Os seus críticos dizem que ele é um caso psiquiátrico mas ele garante que consegue captar a reacção psico-fisiológica das plantas, não sabe como, mas consegue. Diz ele que a informação lhe chega por intermédio de cãibras nos testículos complementadas com um sabor específico nas glândulas gustativas. Quando as plantas choram de dor diz que as cãibras são fortes e agudas e a boca sabe-lhe a tons picantes e apimentados, quando choram de felicidade são umas cãibras suaves e tons florais na boca. O Leonel diz que só consegue captar o choro, mas insiste que o choro é a prova mais concludente de que as plantas são seres sencientes. Nada demonstra mais a intensidade de um sentimento do que o derrame de uma lágrima, diz.
O Leonel é biólogo e investigador na UBI, e não é propriamente um asno, é um homem reconhecidamente muito inteligente e com uma vasta obra escrita na área da Botânica. É certo que esta sua nova teoria causou perplexidade e, como já disse, a maior parte dos seus pares acham que ele pirou de todo. Mas ele não desiste e já está a trabalhar afincadamente num instrumento que consiga captar, de uma forma objetiva e mensurável, aquilo a que ele chama “ondas herbo”. Já tem uma equipa de engenheiros eletrotécnicos ubianos consigo a tentar compreender a natureza dessas ondas, o espectro em que elas se movimentam, tudo o que permita construir um recetor. Ainda não conseguiram, mas, segundo dizem, estão bem lançados. As experiências sucedem-se na UBI, em meio propício ao estudo, que, no caso, é um canteiro de hortaliças às quais se infligem vários tipos de agressões, como sejam pulverização com herbicidas, introdução de lagartas, caracóis, lesmas, etc... O choro sofrido das plantas é comovente, afirma perentoriamente o Leonel, que jura que o sente nos testículos e no palato, “tenho fortes cãibras nos tomates e bué de piri-piri na boca…”, confirma. A máquina (que já foi pré-baptizada de “herbochorómetro”) ainda não detetou choro nenhum porque ainda não foi inventada. Mas para lá caminha, dizem os engenheiros que hão de inventá-la. Por enquanto as hortaliças choram e ninguém as ouve. Ninguém a não ser Tino Leonel que nasceu com esse dom inexplicável, a todos os títulos sobrenatural. Choram convulsivamente mas ninguém sabe. E também ninguém acredita nas cãibras testiculares de Tino Leonel. É por isso que a máquina faz muita falta, para tornar a verdade do Tino uma verdade universal. E é por isso também que os engenheiros se esfalfam a tentar inventá-la, debruçados sobre o canteiro de hortaliças de Tino Leonel.
Mesmo com a negação da comunidade científica, que acha que Tino Leonel se deixou vencer pelo delírio, o mundo vegan vive momentos de angústia. E se é mesmo verdade, e se de facto as plantas também têm sentimentos?! Alguns já andam a tentar perceber até que ponto é possível colher nutrientes a partir dos minerais, e até já foi reportado o caso de um vegan que, sabendo que o granito é constituído por quartzo, feldspato e mica, perguntou se não podia pelo menos comer o pato do feldspato. Claro que levou logo nas orelhas dos outros vegans que acharam uma ignomínia comer o pato.
Quando o herbochorómetro for finalmente inventado na UBI, comercializado e espalhado pelo mundo, o choro lancinante das plantas vai partir muitos corações, e ser herbívoro vai ser tão condenável como ser carnívoro. O império vegan vai-se desmoronar. Os mais convictos e irredutíveis morrerão de fome porque se recusarão a comer inocentes sofredores; outros renunciarão, para sobreviver. E não ficará pedra sobre pedra.
No entanto, se houver inteligência e sensatez, o veganismo ainda pode ressuscitar das cinzas sob uma forma light, permitindo a ingestão de insetos e outros animais inferiores. Eu próprio matei e comi gafanhotos na tropa, eu que não seria capaz de matar uma galinha. Sou capaz de a comer, é certo, se alguém a matar e cozinhar por mim. Mas matá-la, eu?!..., zero. Até confesso que, apesar desta minha pose de durão carnívoro amesquinhador de vegans, no fundo eu próprio sou um vegan não praticante. E, deixem-me dizer baixinho, até os gafanhotos me custou matar. Se fossem melgas não me custava nada, confesso. Talvez por o gafanhoto ser maior, não sei, ou por não me atacar como me ataca a melga. Seja como for, matar um inseto fere sempre infinitamente menos a sensibilidade do que matar uma galinha. Inseto mato, galinha não.
Quando o herbachorómetro matar o veganismo os antigos vegans vão ter que se reciclar e pressupor que é um exagero tratar os insetos como seres sencientes. Mesmo assim não é fácil matá-los, um ser vivo é um ser vivo, por muito rudimentar que seja (nem p’ra mim foi fácil matar os gafanhotos…). Mas, para sobreviverem fiéis à regra de não comer seres sencientes, os antigos vegans vão ter que aceitar a ideia de passar a ter insetos dentro de si. E é dessa forma que o insetivorismo sucederá ao veganismo…

Gondri