sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O herbochorómetro e o advento do insetivorismo.

 


Aludi na crónica anterior (“A rir desde mil novecentos e trocópasso…”) à ideia, não tão estapafúrdia como parece, de que um dia se chegará à brilhante conclusão de que, afinal, as plantas também têm sentimentos. E hoje vou-vos apresentar o Tino Leonel, que, pelo que sei, é o maior entusiasta da ideia, além de que tem em curso importantes estudos e projetos experimentais que visam comprovar essa tese.
Segundo Tino Leonel as árvores choram quando são podadas. Dito de outro modo, choram quando levam uma poda. A comunidade científica optou por rir de Tino Leonel, dizem que ele é maluco. Mas ele insiste que é verdade e já pôs a comunidade vegan em sobressalto. Se as árvores choram é porque tem sentimentos, e não apenas sentimentos leves e superficiais, é porque têm sentimentos profundos. E quem diz as árvores diz as plantas em geral, os vegetais, tudo o que nasce e morre como os animais. A casa de Tino Leonel parece um jardim botânico, tem plantas em todos os cantos, e até tem à beira da cama uma camedórea-elegante que lhe acompanha os sonhos. E diz com palavras certas que as suas plantas são todas sentimentalonas, sabe-lhes o nome, uma a uma, faz-lhes festas e beija-as a cada passo, e sente da parte delas o mesmo carinho e o mesmo amor. Os seus críticos dizem que ele é um caso psiquiátrico mas ele garante que consegue captar a reacção psico-fisiológica das plantas, não sabe como, mas consegue. Diz ele que a informação lhe chega por intermédio de cãibras nos testículos complementadas com um sabor específico nas glândulas gustativas. Quando as plantas choram de dor diz que as cãibras são fortes e agudas e a boca sabe-lhe a tons picantes e apimentados, quando choram de felicidade são umas cãibras suaves e tons florais na boca. O Leonel diz que só consegue captar o choro, mas insiste que o choro é a prova mais concludente de que as plantas são seres sencientes. Nada demonstra mais a intensidade de um sentimento do que o derrame de uma lágrima, diz.
O Leonel é biólogo e investigador na UBI, e não é propriamente um asno, é um homem reconhecidamente muito inteligente e com uma vasta obra escrita na área da Botânica. É certo que esta sua nova teoria causou perplexidade e, como já disse, a maior parte dos seus pares acham que ele pirou de todo. Mas ele não desiste e já está a trabalhar afincadamente num instrumento que consiga captar, de uma forma objetiva e mensurável, aquilo a que ele chama “ondas herbo”. Já tem uma equipa de engenheiros eletrotécnicos ubianos consigo a tentar compreender a natureza dessas ondas, o espectro em que elas se movimentam, tudo o que permita construir um recetor. Ainda não conseguiram, mas, segundo dizem, estão bem lançados. As experiências sucedem-se na UBI, em meio propício ao estudo, que, no caso, é um canteiro de hortaliças às quais se infligem vários tipos de agressões, como sejam pulverização com herbicidas, introdução de lagartas, caracóis, lesmas, etc... O choro sofrido das plantas é comovente, afirma perentoriamente o Leonel, que jura que o sente nos testículos e no palato, “tenho fortes cãibras nos tomates e bué de piri-piri na boca…”, confirma. A máquina (que já foi pré-baptizada de “herbochorómetro”) ainda não detetou choro nenhum porque ainda não foi inventada. Mas para lá caminha, dizem os engenheiros que hão de inventá-la. Por enquanto as hortaliças choram e ninguém as ouve. Ninguém a não ser Tino Leonel que nasceu com esse dom inexplicável, a todos os títulos sobrenatural. Choram convulsivamente mas ninguém sabe. E também ninguém acredita nas cãibras testiculares de Tino Leonel. É por isso que a máquina faz muita falta, para tornar a verdade do Tino uma verdade universal. E é por isso também que os engenheiros se esfalfam a tentar inventá-la, debruçados sobre o canteiro de hortaliças de Tino Leonel.
Mesmo com a negação da comunidade científica, que acha que Tino Leonel se deixou vencer pelo delírio, o mundo vegan vive momentos de angústia. E se é mesmo verdade, e se de facto as plantas também têm sentimentos?! Alguns já andam a tentar perceber até que ponto é possível colher nutrientes a partir dos minerais, e até já foi reportado o caso de um vegan que, sabendo que o granito é constituído por quartzo, feldspato e mica, perguntou se não podia pelo menos comer o pato do feldspato. Claro que levou logo nas orelhas dos outros vegans que acharam uma ignomínia comer o pato.
Quando o herbochorómetro for finalmente inventado na UBI, comercializado e espalhado pelo mundo, o choro lancinante das plantas vai partir muitos corações, e ser herbívoro vai ser tão condenável como ser carnívoro. O império vegan vai-se desmoronar. Os mais convictos e irredutíveis morrerão de fome porque se recusarão a comer inocentes sofredores; outros renunciarão, para sobreviver. E não ficará pedra sobre pedra.
No entanto, se houver inteligência e sensatez, o veganismo ainda pode ressuscitar das cinzas sob uma forma light, permitindo a ingestão de insetos e outros animais inferiores. Eu próprio matei e comi gafanhotos na tropa, eu que não seria capaz de matar uma galinha. Sou capaz de a comer, é certo, se alguém a matar e cozinhar por mim. Mas matá-la, eu?!..., zero. Até confesso que, apesar desta minha pose de durão carnívoro amesquinhador de vegans, no fundo eu próprio sou um vegan não praticante. E, deixem-me dizer baixinho, até os gafanhotos me custou matar. Se fossem melgas não me custava nada, confesso. Talvez por o gafanhoto ser maior, não sei, ou por não me atacar como me ataca a melga. Seja como for, matar um inseto fere sempre infinitamente menos a sensibilidade do que matar uma galinha. Inseto mato, galinha não.
Quando o herbachorómetro matar o veganismo os antigos vegans vão ter que se reciclar e pressupor que é um exagero tratar os insetos como seres sencientes. Mesmo assim não é fácil matá-los, um ser vivo é um ser vivo, por muito rudimentar que seja (nem p’ra mim foi fácil matar os gafanhotos…). Mas, para sobreviverem fiéis à regra de não comer seres sencientes, os antigos vegans vão ter que aceitar a ideia de passar a ter insetos dentro de si. E é dessa forma que o insetivorismo sucederá ao veganismo…

Gondri

3 comentários:

Raquel disse...

Muito bom!!!

Nuno Miguel Ramos disse...

Sucessão de encadeamento de histórias, imparável o nosso escritor UBIano.
Sempre surpreendente!

Jorge Santiago disse...

Gondri não faço ideia como serão as cãibras nos testículos, mas deve ser uma experiência paranormal, já que pode sentir as emoções da flora.
Coisa doutro mundo.
Grande abraço amigo.
Ainda estou a rir pelos entrefolhos.