Quando eu era puto tinha um jardim perto de casa onde se juntava a miudagem toda da minha rua e das ruas vizinhas. Era uma farra pegada, naquele tempo a única coisa que nos prendia a casa era a voz de comando dos nossos pais, se dependesse de nós andávamos sempre no laréu. Agora os putos ficam grudados nos jogos de computador, na net, no telemóvel, se for preciso ficam o dia todo entrincheirados em casa como se estivessem presos. Naquela altura não, enchíamos o jardim e nunca faltavam coisas com que nos entretecemos. Uma das brincadeiras favoritas era o fazer rir. Ficava um a fazer rir os outros e o primeiro que se deixasse rir era o próximo a ir fazer rir. Eu tanto era forte a fazer rir como era fraco a deixar-me rir, e isso permitia-me brilhar porque estava permanentemente na posição de fazer rir, e com grande sucesso.
Sei que me saía bem no jogo mas já não me lembro que tipo de palhaçadas fazia. Naturalmente contava piadas, fazia caretas, coisas do género. Um dos putos, disso lembro-me bem, usava sempre a mesma estratégia: tirava a pila de fora e era risada certa. Estranhamente conseguia ser sempre bem sucedido apesar de ser tão previsível e repetitivo. E demorou tempo até que a tática da pila de fora deixasse de fazer efeito e ele tivesse que diversificar os seus métodos. À parte esse puto que atiçava o riso com a genitália, se bem me lembro a maior parte da malta recorria, tal como eu, aos métodos tradicionais, e sem bolinha vermelha.
As minhas recordações são vagas e distantes, mas há uma que ainda está muito fresca. Um dos putos, não me perguntem o nome, ficava furioso consigo próprio por não resistir às minhas performances e andava sempre à minha procura para me convencer, e se convencer a ele próprio, de que eu não era capaz de o fazer rir. Nas sessões do jardim era sempre dos primeiros a desmanchar-se, mas não se conformava. Quando não estávamos em grupo e me apanhava a jeito lá vinha ele com o desafio: “faz-me lá rir!”. Virava-me as costas, afastava-se um bocado, e ficava a concentrar-se algum tempo. Depois regressava, muito sério, como se já tivesse tomado a pílula anti-riso, olhava-me tenso e firme, com cara de pedra, “faz-me lá rir agora”. Eu sabia que com aquela pressão toda em cima dele bastava-me um piscar de olho e a muralha dele desabava. “Faz-me lá rir agora”. Eu batia uma palma, uma simples palma que em condições normais não fazia rir ninguém, e ele esbardalhava-se todo a rir. Cerrava os punhos, voltava a virar-me as costas e a concentrar-se, e lá vinha ele para a segunda demão, com todos os músculos da cara tesos que nem barras de ferro, “agora é que não me fazes rir”. Eu olhava para ele, olhos nos olhos, ele naquela camisa de forças quase a rebentar, e eu outra vez uma palma, e ele outra vez a deixar-se rir que nem um perdido. Eu nem precisava de bater a palma, bastava esperar que ele desabasse por geração espontânea. No fundo era ele que se fazia rir a ele próprio, quando me enfrentava já vinha derrotado. Andava sempre naquilo, sempre que me apanhava na rua, só eu e ele, era a receita de sempre “faz-me lá rir agora!”. Um dia e outro, e outro e outro. A insistência foi tanta, e tanta a paranóia e o insólito da situação, que nunca mais me esqueci. É das poucas memórias que tenho dos meus, sei lá, treze ou catorze anos, ou até menos.
Naqueles tempos a internet não nos fazia falta nenhuma, éramos alegres e passávamos o tempo a rir. Costumo dizer que o que levamos desta vida são as gargalhadas que damos, e se no fim se concluir que demos mais do que aquelas a que tínhamos direito não creio que Deus nos cobre o excesso. Os tempos eram outros, a alegria era espontânea e natural, sem máquinas e sem eletrónica. Estávamos irmanados com o universo, ao sol ou à lua, éramos rebeldes e malucos, batíamos às portas e fugíamos, no verão enchíamos sacos de besouros e atirávamo-los pelas janelas que estavam abertas para entrar o fresco da noite, fazíamos guerras contra outros bairros, com espadas de pau e muita coragem, íamos aos pássaros, e ás vezes até íamos aos gambuzinos sem nunca sabermos o que isso era. E ríamos, riamos muito, não só no jogo do fazer rir mas em tudo o que fazíamos.
Talvez por ter conseguido sobressair nessas sessões de riso dos meus tenros anos, nunca mais larguei esta minha vontade de fazer rir os outros. Passar uma vida a tirar piadas da cartola, a fazer pequenas sessões de stand up aqui e ali, agora e depois, e ter de retorno o riso dos outros, nunca me deu dinheiro nem poder, mas sempre me deu muito prazer. Agora que estou velho já não sou o mesmo, as ideias já não chegam em catadupa, o improviso já anda ao pé-coxinho, são as agruras do tempo. Era bom que esse tão impensável chá de hiena não fosse apenas um puro exercício de ficção, que eu o pudesse tomar e regressar aos verdes anos do riso convulsivo. Que o pudesse tomar, sim, mas na condição de que se limitasse a fazer-me rir, que não me transformasse num necrófago comedor de carne morta e putrefacta. P’ra ter que comer a carne dos defuntos mais valera tomar um chá de abutre, que esse ao menos dava-me asas. Arriscava-me era a ter os gajos da Red Bull à perna a dizer que isso de o chá de abutre dar asas era uma apropriação indevida de slogan alheio. É claro que o ruído dos gajos da Red Bull chateia, mas, valha a verdade, pior são os animalistas para os quais todo o chá é uma infâmia se não for de origem vegetal. Se algum dia alguém descobre que as plantas também têm sentimentos estou p’ra ver como é que resolvem o imbróglio. Se calhar vamos ter todos que tomar chá de pedra, quem sabe. Nem que seja para fazer companhia à sopa de pedra nos cardápios da alimentação mineral…
Gondri
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