Longe vão os tempos em que as refeições na cantina de Sto. António não ofereciam grande margem de escolha nas refeições diárias. Ou era carne ou era peixe. Mais a sopa, a sobremesa, o sumo e o papo seco. Se quiséssemos refinar o palato, tínhamos que desembolsar mais uns cobres e ir para outras paragens que isto de comer sempre a mesma coisa, acabava por habituar a boca a ponto de se chegar àquela situação em que um Bacalhau à Brás sabia ao mesmo que uma Feijoada à Transmontana, mudando apenas a consistência e aspecto das mesmas. In ilo tempore, não havia cá mariquices millenials de vegetarianismos, veganismos e outras deficiências e modas que pululam na sociedade actual.
Se era para apanharmos uma ténia, era para apanharmos a ténia e ponto final. Cagássemo-la depois! Há malta que ainda é do tempo em que se desconfiava quando víamos cogumelos no prato. A menos que fossem míscaros e aí ninguém se atrevia a olhar de soslaio para aquilo. Tudo marchava. Também havia outras iguarias que nos faziam pensar duas vezes antes de as levar à boca, mas tudo era deglutido com a mesma voracidade e apetites, que isto de se subir a Santo António, fizesse chuva ou fizesse sol, não dava espaço a esquisitices.
Ora, sendo um menu diário parco em opções, seria natural que fossem igualmente parcos em variedade semanal. Menus havia em que diziam que em tal dia "era Bacalhau com batatas" e apenas víamos batatas a cheirar a bacalhau; noutros, a famosa "carne de porco à alentejana" em que - novamente - a batata fazia missa de corpo presente - bem como as omnipresentes conchas vazias das ameijoas - e a carne tinha um aspecto dúbio, polissaturada de lípidos, nervuras e rija como solas. Uma vez trouxe um desses nacos de "carne" lá para casa para dar ao cão e este olhou para mim de lado, com ar de quem estava a pôr em causa o meu bom nome e a mostrar-me os caninos.
Mas coisa que não escasseava naquelas cantinas (desconfio que havia viveiros algures no Jardim de Nª Sra da Conceição) era a Maruca. A Maruca estava para a UBI como o queijo está para a Serra. O que sempre me meteu muita confusão, pois ficávamos com a sensação que aquela coisa dos "gostos e pratos regionais" era apenas "areia para os olhos" da ingenuidade académica. Que sentido fazia, estarmos a estudar numa localidade onde havia queijo, ovelhas, carqueija, míscaros, trutas, tudo ao pontapé, e darem-nos maruca e outras coisas não autóctones para comermos? Era só para nos chatear! Sei que na UA, por exemplo, havia sempre um ovinho mole à sobremesa ou Enguias de escabeche como "amuse bouche". No Porto, a cantina abria ao lanche para servir uns mini pratos de tripas à moda local. Em Lisboa não te serviam nada. Eram uns agarrados e uns sem ideias porque não é região que se preze para definir um prato típico pois tudo o que comem é proveniente do resto do país. Nas primeiras aqui citadas, posteriormente, despejavam-te a lavagem que entendessem no prato e tu nem davas conta nem te queixavas! Mas nunca termos tido direito a um queijinho da serra às refeições ubianas, é coisa que não lembrava ao diabo. Ou uma chanfaninha. Ou trutas do Paúl, sequer!
Tínhamos uma dieta constantemente bombardeada com maruca e nem mais um pio! Era "maruca recheada com maruca", "maruca salteada com maruca", "filetes de maruca com batatas confitadas em óleo de maruca" e sabe-se lá mais o quê. "Estrogonoff de maruca", "Mousse de maruca" ou "baba de maruca" eram pratos mais raros e sinal que o cozinheiro tinha mudado e serviam apenas para desenjoar.
É sobejamente sabido que o peixe estimula a inteligência e que a carne embrutece o indivíduo. Mas tinha de ser mesmo carne e não os sucedâneos que nos davam, que com aquilo que tínhamos na frente não havia efeito placebo que resultasse. Certo dia houve um engano na redacção do menu do dia e em vez de "maruca" alguém escreveu "peixe espada" e quase provocou um motim.
Portanto, seria natural pensar que o mar estava sobrelotado de maruca, mas não. Quando vinha a casa, perguntava à minha mãe - meio a medo não estivesse a dar-lhe ideias tristes - se não havia maruca nas peixarias, ao que esta me dizia que era raro encontrar e quando aparecia era um peixe assim a modos que para o "carote". Isto deixava-me a pensar ainda um pouco mais. "Ora... um peixe assim a "modos que para o carote" não é peixe para dar-se aos índios que estudam na UBI! A menos que haja um mercado negro da maruca que eu desconheça.". E, a menos que alguém nos serviços adjudicadores da paparoca ubiana estivesse a ser enganado à força toda, julgando que estava a comprar maruca e afinal recebia toneladas de peixe-porco disfarçado, havia qualquer coisa que não batia certo.
Devo dizer que por manifesta falta de tempo, nunca me dei ao trabalho de aprofundar a questão como seria - quiçá - merecedora. Sei que ainda é cedo aferir se a quantidade de maruca ingerida provocou efeitos a longo prazo ou não. Sei é que o prazo já vai adiantado e tirando as maleitas próprias da idade, nada aponta para que a culpa seja imputada directamente ao consumo de tal bicheza nadadora. E igualmente o que sei é que, ainda hoje, quando me cruzo com maruca nos hipermercados, vêm-me à ideia aqueles pratos gourmet que nos eram dados na cantina de Sto. António. E como sou daqueles que acha que "Em Roma, sê romano", acho que a voltar a comer maruca na vida, será apenas na cantina da UBI. É como ir a Trás-os-Montes comer uma caldeirada de enguias: é estúpido porque lá não há enguias, quanto mais caldeiradas em condições...!
5 comentários:
De volta, neste início de ano e com desenvoltura na escrita igual a 2020.
É sempre com agrado que leio e me deleito com tais prosas.
Faço minhas as palavras do Nuno, é sempre um prazer ler os teus “desabafos”, visualizei a “dita” maruca ☺️!!!
bem vindo de novo a bordo, grande amigo grande.
Olá Gondri
A cantina de Santo António faz-me lembrar os teus desabafos / protestos quando a sopa era canja – lá estavas tu a meter numa só colher toda a massa e os “fiapos” de frango... e dizendo “isto é só água, não alimenta ninguém…”
Um abraço
Ruão
Oi Ruão,
essa da canja já caiu há muitou no esquecimento. Obrigado pela memória.
Um grande abraço para ti
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