quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Cinema Paraíso



A Clockwork Orange (1971) - IMDb 

 

Frequentei a UBI nos anos 80, na altura ainda Instituto Universitário da Beira Interior, nos dois primeiros anos do meu curso de Engenharia Electrotécnica e de Computadores. O curso teria de ser concluído  no Instituto Superior Técnico em Lisboa, por convénio dos dois estabelecimentos de ensino, pois o IUBI só estava em condições de leccionar os dois primeiros anos. Como já referi em crónica anterior, foram dois anos bem passados. Muita diversão, muitos copos e afins. Sendo na altura algo tímido com as mulheres, não posso dizer muitas miúdas, mas as suficientes, e cada uma no seu tempo.

Como todas as cidades do interior, e sem querer estar aqui a afirmar a supremacia do litoral, a cena cultural na Covilhã, mesmo nos dias de hoje, está em escala logarítmica uns degraus abaixo do que se passa em Lisboa ou no Porto. Na mesma escala logarítmica, Porto e Lisboa estão uns níveis abaixo do que se passa em Nova Iorque, Londres ou Paris, ou outras cidades populosas. É um facto. Agora imaginem a Covilhã nos anos 80: não se passava de todo lá grande coisa em termos culturais.

No meio deste deserto cultural havia uma sala de cinema na zona alta da cidade, já não sei precisar bem a localização mas estando no mercado municipal e subindo umas ruas chegava-se lá. Durante os fins-de-semana passava filmes comerciais e de massas. No entanto, precisamente todas as quartas-feiras a coisa mudava de figura. Enquanto fui estudante no IUBI, enchi a vista de excelentes filmes, fruto de uma selecção criteriosa, e que ainda hoje relembro com prazer.

Depois de um dia de aulas, rumava invariavelmente para a Residência Universitária perto do Jardim de Nossa Senhora da Conceição, onde não só almoçava e jantava todos os dias, como também mandava lavar a minha roupa. Isso era possível mesmo aos não residentes. Era preciso escrever nas peças de roupa o nome com um marcador, e ficou gravado na minha memória a cor verde das minhas iniciais sobre as meias brancas de desporto, que usava na altura com sapatilhas igualmente brancas. Nas quartas feiras o ritmo das passadas para o jantar era mais acelerado: o filme começaria lá para as 10 da noite e muita coisa havia a fazer antes.

Os jantares na residência eram divertidos. Havia lá pessoal que eram verdadeiras peças de artesanato, e podiam ocorrer cenas insólitas e hilariantes. Bem, adiante que é dia de cinema e há que despachar. Com aquela idade quase toda a comida parecia-me boa. Era económico comer sempre na cantina e guardar a massa para a farra. Nessa altura, com 19 anos, descobri que era um bom gestor. Ao contrário de amigos mais abastados, nunca chegava ao fim do mês sem dinheiro. De tal modo que me foi aplicado o epíteto de judeu. Não de forma permanente pois já havia o caro Cohen, que esse sim era mesmo o judeu. Das raras vezes que não comia na residência ia à taberna do Sr. Matos, personagem incontornável do universo UBI durante várias décadas.

A maior parte dos amigos no círculo mais próximo não comiam na residência. Era demasiado rasca para eles e muitos viviam em apartamentos. O punhado de cinéfilos reunia-se precisamente num desses apartamentos para um pré serão marroquino, em que não faltava o cházinho (de cevada) e o cachimbo.

Já bem aviados encetava-se a subida em direcção ao cineteatro em passada animada e gargalhadas. O vulto de sobretudos e gabardinas negras a la Joy Division destacava-se dos demais e acercava-se da bilheteira. O preço era baixo. Os filmes absolutamente fantásticos. O hall de entrada do cinema estava apinhado, repito, 4ª feira, Covilhã, 1984/5. As restrições tabágicas na altura não existiam, estava tudo na expectativa do filme, conversando animadamente no denso nevoeiro do fumo dos cigarros. Nem notávamos, fumávamos também. 

Os filmes não eram os mais actuais. Por aquele preço nem podiam. Eram filmes de grande qualidade, que por não serem recentes se conseguia quiçá um melhor preço na distribuidora. Também não sei se haveria um desconto académico e lembro-me que havia membros do corpo docente do IUBI envolvidos na selecção dos filmes. Tentei confirmar esta informação mas não me foi possível antes de escrever esta crónica.

O grande momento ia começar. Sala cheia, luzes apagadas. Após aqueles preliminares habituais do cinema, anúncios de outros filmes, etc., as luzes apagavam-se mais uma vez e começa a ouvir-se a banda sonora do filme da noite. 

Imaginem, com o sangue que nos corre nas veias aos 20 anos, ver o Malcolm McDowell ao longe todo vestido de branco e chapéu de coco preto, a câmara a aproximar-se lentamente, com a música sinfónica de Walter Carlos a soar inimaginavelmente imponente, até ao grande plano que se vê em cima. A pura emoção destas imagens e destes sons ainda hoje, e felizmente, me dá arrepios e pele de galinha. Estamos a ver Laranja Mecânica, a obra-prima de Stanley Kubrick, filmado em 1971, 13 anos mais tarde num pequeno cinema da Covilhã.

A lista de filmes que vimos é longa. Quase todos os filmes de Ingmar Bergman, assalto à 13ª esquadra de John Carpenter, o aterrador Alien o 8º passageiro, Carrie de Brian de Palma, Chinatown de Roman Polanski, O Padrinho de Francis Ford Coppola, Lua de Papel de Peter Bogdanovich, etc, etc, etc. Às vezes havia filmes recentes. Por exemplo, vi lá o formidável Brasil o Outro Lado do Sonho de Terry Gillian, filmado em 1985. 

Para quem dirigia o cineteatro naquele tempo, que tenho pena de não saber ao certo quem foi e apenas tenho suspeitas, fica aqui o meu muitíssimo obrigado. Agradeço-lhe o facto de ter tornado esses dois anos ainda mais incríveis do que seriam sempre de qualquer maneira.










5 comentários:

Nuno Miguel da Cruz Ramos disse...

Olá José, este belíssimo texto é memória UBIana, que pode ser o pontapé de saída para o que vai acontecer, neste próximo mês.

Muito bom,a maneira como consegues captar a atenção é fabulosa.

Gondri disse...

Parabéns, magnífico e interessante documento desses tempos, de leitura obrigatória.

libelinha disse...

Obrigada pelo texto. Durante a leitura recordei imenso o cine teatro. Passei lá muitas horas!

Unknown disse...

Muito bom JJ! Adorei a partilha destas fantásticas memórias :)

José T. de Sousa disse...

A todos, obrigado pelo feedback positivo!