sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A levitação eletrolítica do Dr. Mendonça.

O Dr Mendonça, distinto professor de filosofia da UBI, homem de pensamentos extravagantes e práticas orientais de controlo da mente, já era mestre em telepatia mas ainda estava muito cru no que dizia respeito aos segredos da levitação. Há muito que estava dedicado a esse assunto e, por tudo o que tinha lido e estudado, tinha a fundada convicção que só os monges tibetanos o poderiam ajudar nesse desígnio. Por isso resolveu ir ao Tibete para conseguir levitar.
Seis meses antes de partir iniciou uma dieta rigorosa, convencido de que quanto mais leve estivesse melhor levitaria. Passou noites fitado na lua, conheceu os luares todos daquelas noites, porque, acreditava, se na lua todas as coisas eram mais leves do que na terra, também ele ficaria mais leve de a mirar e namorar. 
Focado cegamente no objetivo nunca parou de porfiar, perseverou incessantemente, e por várias vezes acabou estendido no chão depois de mais uma tentativa infrutífera de levitar pela força da mente. Era escusado tentar sozinho porque fracassava sempre, e, por muito que procurasse, ninguém ao seu redor o podia ajudar. Tinha mesmo que ir ao Tibete.
Assim andou nos meses que antecederam a partida, concentrado ferreamente no seu propósito, sem descarrilar um segundo que fosse do caminho que traçara. E chegou o dia de partir. 
Foi sozinho, recomendado por um monge tibetano com quem se cruzara num evento espiritual nos Andes, e de quem se tornara amigo. Por ser da UBI, universidade cuja nomeada não tinha fronteiras e já chegara aos Himalaias, foi recebido com grande pompa e circunstância. Sentiu-se imediatamente integrado no espírito daquele lugar, onde, ao contrário do ocidente, os homens crescem para dentro desapegados do mundo exterior e material.
Os primeiros meses foram de meditação e encontro com as almas que não têm peso e vagueiam na linha do tempo. A cada dia que passava menos sentia o peso impuro e perecível do corpo, e tudo o levava a crer que não faltava muito para que as leis da física começassem finalmente a ceder à sua vontade.
Um dia foi com vários monges para o cimo de uma das montanhas dos Himalaias, num retiro espiritual de cinco dias e cinco noites. Naquele silêncio montanhoso e introspetivo viveu os momentos mais intensos do seu ser, mais perto do firmamento, dos astros e dos deuses, com uma fogueira de esplendor acesa dentro de si. Ao nascer do sol do terceiro dia, num ritual de agradecimento, um dos monges abriu os braços tipo Cristo Rei, para agradecer à natureza, e quando os fechou a alta velocidade encontrou a cara do Dr. Mendonça, impreparada para o embate, como uma fatia de fiambre entre duas fatias de pão. Logo aí o Dr. Mendonça começou a querer levitar…
Aquele estaladão a duas mãos do monge gerou também uma corrente elétrica (e consequente eletrólise) entre a sola dos pés e o alto da cabeça do Dr. Mendonça - ou seja, além de espiritual, o estaladão foi electrolítico: dissociou-lhe a água do corpo em duas partes de hidrogénio e apenas uma de oxigénio (H2O-->2H+O). Como se sabe, o hidrogénio é o elemento mais leve da natureza, e levita sobre todos os outros. Ora o Dr. Mendonça, que já estava a querer levitar por via do pão com fiambre, com tanto hidrogénio levitou mesmo. E foi um momento apoteótico, “Uáaaau!”, gritou, num perfeito estado de euforia.
E foi assim que o Dr. Mendonça conseguiu levitar.

Gondri


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