quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

As conferências ubianas “Não Calem Velhotes”

 


O Sílvio e o José são dois papagaios idosos, respetivamente de 72 e 74 anos (lembro que os papagaios têm uma esperança de vida na ordem dos 80 anos) que cantam e falam pelos cotovelos. Vivem numa residência em Massamá, em casa dos seus dedicados donos que lhes ensinaram a dizer “o André Ventura é um bronco”, frase que eles repetem amiúde juntando mais uns impropérios e umas canções de escárnio e maldizer. Tudo seria normal se os vizinhos, uns fascistas inveterados, não tivessem solicitado às autoridades que calassem os velhotes, o que, no caso daquelas aves que não têm emenda, é o mesmo que solicitar que lhes seja extraído o aparelho vocal, ou até, em última instância, que sejam destinados ao almoço dos cães da vizinhança que lhes chamariam um figo.
Quando a notícia da anunciada punição dos papagaios saiu à rua, as associações de defesa animal vieram imediatamente a terreiro condenar a desumanidade fascista dos vizinhos das pobres aves. O Sílvio e o José tiveram manifestações de apoio à porta e foram imediatamente elevados à condição de heróis pelas organizações de esquerda, que também achavam que o André Ventura era um bronco. Os vizinhos queixosos argumentaram que o que os movia não eram motivações de natureza política mas sim a incapacidade que já sentiam para suportar a constante gritaria dos prevaricadores sonoros, que não os deixavam dormir a sesta e já estavam a pô-los numa pilha de nervos e a caminho dos psiquiatras. 
A confusão instalou-se nas redes sociais e em todo o espaço mediático, e o PAN mais uma vez solicitou o apoio da UBI, universidade de referência na luta contra toda e qualquer discriminação. A reitoria da UBI decidiu então promover um conjunto de conferências com projeção internacional, usando como logotipo o famoso vinho do Porto, “Calem Velhotes”, e, num rasgo de inspiração, alterar para “Não Calem Velhotes” numa óbvia alusão aos dois papagaios idosos a quem a maldade humana queria cortar o pio. 
Como cidadão ubiano sou o primeiro a aplaudir as conferências “Não Calem Velhotes”, e se me deixarem quero ser um dos oradores. Se de facto me derem essa oportunidade iniciarei a minha apresentação levantando bem alto uma garrafa de “Calem Velhotes”, e dizendo, “Calem Velhotes?!... mas o que é isto, que censura geriátrica é esta?! Vamos calá-los, vamos restringir-lhes a liberdade, que indignidade é esta?! Não tarda estamos a apelar à eutanásia, à morte destas velhas e inocentes criaturas cujo único crime é serem fantásticas palradoras. Calem velhotes uma ova, o único velhote que merece ser calado é o velho do Restelo, essa figura pessimista e avessa à glória que Camões tão bem cantou nos Lusíadas (Canto IV, 94-97)”.  
As conferências “Não Calem Velhotes” serão certamente um sucesso aquém e além-fronteiras, e até o Instituto do Vinho do Porto já agradeceu à UBI a excelente publicidade que dará ao seu prestigiado “Calem Velhotes”. O PAN e todas as organizações “animal” já elogiaram mais uma vez a inestimável contribuição da UBI em defesa dos animais. A notoriedade e mediatização do evento está a colocar a UBI nos píncaros.
Quem não gostou foi o deputado André Ventura que num acesso vergonhoso de má educação disse que se estava, cito, “a cagar para a UBI”, que a UBI era uma universidade de ciganos, e que o seu almoço preferido era um fricassé de papagaio acompanhado com um cálice de “Calem Velhotes”, e de sobremesa um pudim de escalpe de cigano com uma calda de Catarina Martins caramelizada. 
Escusado será dizer que a comunidade cigana ficou piursa e jurou vingança, armou tal escabeche à porta do Ventura que até a pobre da coelhinha Acácia ficou apavorada e aos saltos, evacuando abundantemente com o susto e deixando um pivete a estrume coelheiro por toda a casa. A Catarina Martins, indignadíssima, juntou-se ao protesto cigano, de megafone em riste, e debitou em altos decibéis o pior que há no calão ofensivo da língua portuguesa, chamando ao André Ventura todos os nomes, sendo que “energúmeno” até foi dos mais suaves. Astuta e populista, aproveitou a oportunidade para transformar o protesto num pequeno comício, e convenceu mais de setenta e cinco ciganos a filiarem-se no Bloco de Esquerda, não tanto para aumentar o número de militantes mas principalmente para ver se conseguia enriquecer o parque automóvel do partido com alguns veículos de tração animal, só para irritar os gajos do PAN…
Em suma, e para rematar esta crónica de fim de ano, volto a sublinhar que a UBI será notícia de primeira página com o tão esperado ciclo de conferências “ Não Calem Velhotes” que terá lugar no Grande Auditório da FLC, nos dias 8,9 e 10 de Fevereiro de 2021, e onde se escalpelizará, com total liberdade e direito à contestação, a polémica afirmação “o André Ventura é um bronco”. Merecedor de honras presidenciais, o evento será inaugurado com grande pompa e circunstância por Sua Exª o Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a menos que, o que configuraria uma vertiginosa falha das sondagens, ele não ganhe as eleições a 24 de Janeiro. Em política tudo é possível, até a mais que improvável vitória de André Ventura, que, caso acontecesse, redundaria óbvia e inapelavelmente no cancelamento do ciclo de conferências ubianas, e até, quem sabe, na entrada da UBI para a lista negra da presidência. O que vale é que a UBI, que nunca se conforma com o infortúnio, arranjaria certamente maneira de reconquistar a simpatia do presidente eleito, nem que para isso tivesse que prescindir do nome UBI e passasse a chamar-se UAV, Universidade André Ventura, ou, em alternativa, UCA, Universidade Coelhinha Acácia. 

Gondri


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Momento de nostalgia…



Quando apanhei este vídeo na net os olhos ensoparam-se-me de saudade, de uma humidade que não chega a ser choro, não derrama, mas deixa nos olhos uma película aquosa onde a luz reflete com mais brilho. Senti um aperto no peito e algures na barriga, a bem dizer não sei onde, uma coisa assim de querer voltar atrás no tempo, voltar à casa dos vinte aninhos, à cena mirabolante de desmanchar a rir que agora me veio à tona da memória. Sim, embargou-se-me a voz, apertaram-se-me as vísceras e humedeceram-se-me os olhos quando me lembrei do dia em que, num saudoso jogo de futebol de onze entre ubianos, me estendi ao comprido com estrondo, de ventas no chão, e arranquei mais gargalhadas aos presentes do que uma tirada irresistível de stand-up-comedy. Lembrar-me desse tempo dá-me sempre um abafo de nostalgia, não há como evitá-lo, e eu nunca deixei de ser aquele sentimentalão que se deixa agarrar pela emoção. Arranquei com a bola em velocidade, eu que nunca joguei porra nenhuma, e ás duas por três corri mais depressa do que ela, deixei-a para trás, pisando-a, e entrei num desequilíbrio sem retorno – ou seja, a cinemática e a dinâmica desentenderam-se com a estática, e quem levou a melhor foi a estática: estatelei-me no chão como um pinheiro. 
Ao contrário do incrível herói do vídeo anexo, não fiz magia, apenas alegria. Alegria nos outros, claro, que só pararam de rir quando as pilhas acabaram. Eu, porém, fiquei ali a contas com o sofrimento agudo do trambolhão, e, deixem-me confessar, ainda tive a falsidade de rir para não dar parte de fraco. Se eu me tivesse desequilibrado por causa de uma porrada, de uma rasteira, ou coisa que o valha, caía no chão mas não caía no ridículo. Mas assim, levar a bola em corrida e meter o carro à frente dos bois, pisar o esférico cheio de ar, que deforma e reage numa lógica de mecânica de fluidos, que dá tipo um safanão quando se sente apertado…, ui, nem vos digo nem vos conto a sensação de impotência contra as leis da física e do imprevisto (naquele ínfimo instante da pisadela nem eu nem ninguém sabia onde e como é que o movimento desaguaria na inércia). Foi caricato, hilariante, tal qual aquelas modelos que atacam a passerelle em grande estilo, saltos altos tipo duas andas de saltimbanco, e que, de repente, começam aos ss, aos ss, tentando em vão repor o equilíbrio em cima daqueles arranha-céus de sapateiro, e que, depois de um esforço inglório e tristemente mediático, se esbardalham todas no chão como um castelo de cartas, doridas no corpo mas mais doridas ainda no amor próprio. Comigo foi igual, não tão grave como no caso dessas desafortunadas top models, mas ainda assim nada agradável.
Imaginem agora que aqui o je, em vez do insucesso risível  por que passou, se tem saído com uma obra de arte como a deste bacano do vídeo. O que não diriam?!... O bacano do vídeo também deixou a bola ficar para trás e tinha tudo para ser infeliz, mas quis a fortuna que em plena queda lhe surgisse a bola nos calcanhares, que tivesse os reflexos súbitos de dar um coice para cima, em jeito de catapulta, e de papar o guarda redes com uma pinta dos diabos. Imaginem agora que me acontecia o mesmo, que eu marcava deste modo o golo da minha vida, o que diria o eu cronista do eu jogador? Certamente qualquer coisa como isto: “Pélé, Maradona, Messi, Ronaldo…, qual deles teria talento e arte para, em plena corrida, rodar noventa graus até à horizontal, e, sempre em movimento, já paralelo ao chão, em levitação baixa, tocar a bola com os pés num retro-gesto de catapulta medieval, de costas para o céu, num dilúvio de genialidade, arquitectando um chapelão ao guarda-redes sem que este sequer perceba que foi papado por uma obra-prima...”. A realidade foi no entanto bem diferente, e, ao contrário do bacano do vídeo, eu não tive a bem aventurança de marcar um golo assim. Foi pena, porque o meu nome ficaria indelevelmente gravado na história comico-desportiva da UBI como o autor do golo mais hilariante, exótico e irrepetível de todos os tempos…

Gondri

domingo, 13 de dezembro de 2020

Vitor Espadinha partilhou uma foto todo nu, escrevendo, "ofereço o meu corpo à DGS para ser o primeiro cidadão português a ser vacinado contra a covid”.

 



Já lá vai o tempo em que o Vitor Espadinha, um sportinguista empedernido, oferecia os punhos para dar umas valentes murraças ao Buno de Carvalho. Disse que só não o sovou porque chegou vinte minutos atrasado, que foram os vinte minutos mais sortudos da vida do Bruno, que o Bruno devia estar era internado e andava à solta. O Espadinha apareceu então no écran das TVs, completamente fora de si e a oferecer porrada ao outro, vociferando impropérios e garantindo ao país inteiro que não eram os seus oitenta anos que o impediriam de arrear forte e grosso no meliante. Na altura ofereceu porrada em direto, agora, mais apaziguado, oferece o corpo à vacina. Cantor, ator, e, pelos vistos, também um bocado maluco, o Vitor Espadinha tirou a roupa sem qualquer propósito sensual, e, todo nu, posou para o fotógrafo que felizmente lhe desinfetou a vergonhosa aparição com uma escuridão estratégica, a tapar-lhe as partes.
Apesar de ter nome de espada, o Vitor Espadinha nunca se fecha em copas, diz tudo o que tem a dizer, o que, acredito, deve confundir os cartomantes. Espadas a trunfo é sempre um pau de dois bicos, espadas e paus, duas cartas pretas, e lá vem o Mamadou outra vez com a cena do racismo. Mas racismo para o Espadinha é a verde e vermelho, não é a preto e branco, com ele não é a supremacia branca, é a supremacia verde. Não abomina pretos, abomina vermelhos, lampiões. Não é uma questão de pele, não tem nada contra os peles vermelhas, aliás até acha que os cowboys é que eram uns grandessíssimos fdp. É uma questão de coração, de cinco violinos, de leões garbosos e imponentes, de Alvalade ao rubro, de um clube diferente, que sabe sofrer, dezoito anos de lavagens a seco e o verde não debota. 
Mais do que ator e cantor, o Espadinha é lagarto. Os lagartos que me perdoem, mas, se a verborreia verde me trata por “lampião” em vez de águia, sinto-me obviamente no direito de retribuir. Ora, não se vê como é que um lagarto nu pode ser o primeiro português a ser vacinado contra o covid. Que se saiba os lagartos estão imunes, não consta coisa diferente. 
No entanto, já se diz também por aí que o Vitor Espadinha todo nu não é um lagarto, é mas é um peixe espada, um peixe espadinha, digamos. É caso para perguntar: então agora o primeiro português a ser vacinado contra o covid é um peixe espada?!... Já se viu algum coronavírus debaixo de água, por acaso?! parece que sim… A brincar a brincar, não tarda estão a dizer que o covid é que dizimou os cardumes de sardinha, que não foi nada a pesca excessiva. E até haverá quem diga que o covid infetou a estética do tamboril, que é feio que nem se pode olhar para ele. Eu, por mim, não acredito em nada disso. Acredito, isso sim, que o covid é um vírus terreste, e que perde a virulência quando está debaixo de água. Por isso, por mim esqueçam, vacinar os peixes é tão estúpido como querer ensinar latim a um musaranho. 
Pensando bem, e para rematar esta breve crónica, o Vitor Espadinha, coitado, nem é um lagarto, nem um peixe espada, nem uma sardinha, nem nada que o valha. É um leão! Um leão nu. Esfolado, depois de dezoito anos à míngua. Um sportinguista todo nu é sempre um leão esfolado. Da juba já nem se fala. O Espadinha o que quer é ser o primeiro leão esfolado a levar a vacina, convencido de que isso lhe trará a pele de volta, e, finalmente, um título de campeão. Haja no entanto alguém que lhe explique que a vacina é contra o covid, não é contra o décimo nono ano sem ganhar. Temos pena…

Gondri

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A insustentável ligeireza da semântica


"- 'Tão!
- Que tal?
- Tá-se!
- Vamos curtir?
- Fixe!
- Bute!
(...)
- Tão? Curtiste?
- Ya! Foi uma moca!
- Podes crer!
- E tu? Curtiste?
- Curti bué, tás a ver?
- Bisamos?
- Bora lá! Vai ser totil!
- Vá'tão!"

Conversa tida num casalinho apaixonado dos tempos modernos, à porta da Campos Melo.

De sublinhar a riqueza linguística e enobrecimento da semântica. Sucinta e intencional. E ao mesmo tempo onusta de conteúdo. O que demonstra que por vezes o uso e abuso da elaboração das frases carece de sentido se muito intrincadas e com acúmulo de gambérrias na verborreia. Tal exemplo demonstra grau de abreviação num intuito comum, simplificado e sem intermédio de artefactos adicionais ou argumentos desnecessários para a realização de tais elucubrações.

sábado, 5 de dezembro de 2020

O Gonçalves e o gonçalvismo são duas doutrinas políticas…

 


Quando, na minha última crónica, a dos pescetarianos, fiz referência ao “gonçalvismo”, veio-me imediatamente à cabeça a fase revolucionária do pós-25 de Abril, então batizada disso mesmo, de “gonçalvismo”. Não entrei no entanto por aí para não estar a misturar filosofias alimentares com história política, ou, dito de outro modo, para não maçar. E passei à frente, deixando a coisa p’ra trás.
No entanto o meu amigo Fernando Merino, com a sua habitual acutilância, não me deixou esquecer a coisa e trouxe o gonçalvismo para os comentários. E eis que, de repente, quase milagrosamente, se fez luz aqui dentro desta caixa onde guardo os miolos e me lembrei de uns versos que escrevi, andava eu a estudar em Lisboa, no liceu D. João de Castro, faz alguns 45 anos. Parece de facto milagre eu me lembrar disso, rigorosamente, palavra a palavra. Não os tenho escritos, é mesmo só de memória. É certo que nestes longos anos relembrei-os algumas vezes, não muitas, em conversas com amigos, e talvez isso também tenha ajudado a mantê-los ativos no consciente. Mas, mesmo assim, tê-los frescos como se os tivesse escrito ontem, apenas por via oral, ao fim de quase meio século…
Como já tive oportunidade de esclarecer, tenho uma memória de libelinha, passo inclusivamente vergonhas com as pessoas por causa disso. Mas há coisas, uma ou outra, que ficam gravadas a ferro e fogo. Não sei porquê. Uns versos adolescentes sem os quais eu jamais me lembraria que na minha turma de então tinha um colega que se chamava Gonçalves, outro de alcunha o “peru”, e outro o “críticas”.
Na altura morava na Trafaria, no outro lado do rio. Apanhava o barco para Belém e depois ia de elétrico para o liceu. Estive em Lisboa no dia 25 de Abril de 1974. O que me lembro com mais relevância é de chegar a Belém e de ficar parvo a olhar para uma estrada que tinha o alcatrão todo abatido pela passagem dos chaimites de guerra. Acho que não me lembro de mais nada de especial. Nos tempos que se sucederam é que se instalou a confusão, na escola e em todo o lado. O período revolucionário em curso entrou em paranoia, todos os vandalismos e mais algum eram permitidos, nacionalização da banca e dos setores estratégicos, ocupações, saneamentos na reforma agrária, etc. Vasco Gonçalves era o primeiro ministro, vivia-se então a fase do gonçalvismo.
Estávamos nos longínquos anos 70. Os computadores não passavam de ficção científica, precisávamos muito mais uns dos outros para nos divertirmos. E escrevíamos poemas. O Jorge, um dos meus amigos lá da Trafaria, era de partir o carolo a rir quando trazia um poema novo. Passava-se completamente, só lhe faltava entrar em transe. Um dia chegou com um ar apoteótico, “hoje escrevi um poema muitá profundo”. “Como é que é Jorge, lê lá!”. Não precisou de ler, disse-o de cabeça “Deus é, reticências”. E conforme o disse deitou as mãos à cabeça, esfregou os cabelos com toda a força, punhos e dentes cerrados, todo maluco com tanta emoção, “tás a ver, meu, altamente, Deus é, três pontinhos, é um mistério tás a ver?!…”. “Só isso, Jorge, Deus é, três pontinhos?!”, perguntei incrédulo. “Claro, Deus não tem explicação, os três pontinhos deixam o mistério no ar, ah, cá gandá emoção…”. Era doido de todo, aquele Jorge…
Eu lá escrevia também os meus poemas. Já se foram todos, levados na levada do tempo. Todos exceto o que me trouxe aqui para esta crónica. Minto, também me lembro de um que me valeu uma reprimenda do Carlos Barra, também meu amigo e crítico de serviço de então. Era assim:

“É a menina sagrada
Indolente como a lua
E ressona sossegada
Na minha cama dourada
Que é a luz em que flutua…”

Fui todo contente a mostrá-lo ao Carlos. E levei cá um baile que até andei de lado. “Então tu vens com essas palavras todas bonitas acerca da menina, e depois dizes que ela está a ressonar?!...”, disse o Carlos, e troçou de mim quanto pôde, à gargalhada. Outros tempos…
Mas, antes que me vá embora sem dizer os versos do gonçalvismo, vou mas é soltá-los de uma vez por todas, não vá isto acabar sem eles. Então é assim, vamos cá dizer:

“O Gonçalves e o gonçalvismo
São duas doutrinas políticas
Criticadas pelo Críticas
Homem de cravo encarnado
Que atravessa o Tejo a nado
E chega à Trafaria
Onde é sempre recebido
Com imensa simpatia
Pela coninha da tia
E ainda p’lo Peru
Rapazinho mui baixinho
Que tem um grande cuzinho
E caga rochas detríticas,
De que gosta muito o Críticas…”.

Quase meio século depois, e tenho-os na ponta da língua. A qualidade é pouca, mas não é disso que se trata. O que estes versos têm de especial, para mim, é o facto de já fazerem parte da minha mobília craniana. Uma memória assim num tipo que é uma nulidade em termos de memória não deixa de ser, pelo menos, inacreditável. Para mim é um mistério…

Gondri


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Sermão de São Gondri aos pescetarianos.

 

Para quem não sabe, o pescetarianismo, ou piscitarianismo, é uma derivação do vegetarianismo em que se pode comer peixe e marisco. Com tantas variações modernas, umas mais “in” do que outras, suponho que também já esteja patenteado o franguirianismo (derivação do vegetarianismo em que se pode comer carne de frango), o vaquirianismo (derivação do vegetarianismo em que se pode comer carne de vaca), o porquirianismo, o borreguirianismo, o peruirianismo, e tantos outros cujas características facilmente se podem inferir do nome.
Isto não considerando o canibalismo onde também existe um grande número de variações, como por exemplo o manuelrianismo (derivação do canibalismo em que não se podem comer pessoas com o nome Manuel), o joaquinrianismo (derivação do canibalismo em que não se podem comer pessoas com o nome Joaquim), e assim sucessivamente. Eu, por exemplo, que consto no BI como José António Gonçalves Rodrigues, cheio de medo de ir para a mesa dentro da travessa, defendo obviamente o Josésismo, o Antónismo, o Gonçalvismo e o Rodriguismo. (Só para que conste, o último rei de Portugal, D. Manuel II, chamava-se Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Saxe-Coburgo-Gotha e Bragança. Oficialmente morreu de um edema na glote, em 1932. Mas, cá p’ra mim, foi é comido por um canibal sem paciência).
Mas a presente crónica não tem como objetivo listar o vastíssimo leque de variantes alimentares, antes se foca unicamente no pescetarianismo. Os peixes não sofrem? – pergunto. Ó ubianos pescetarianos - que os há, certamente -  então um robalo, uma sardinha, um cherne, etc., não são seres sencientes? Nunca viram o desespero sofrido de um peixe quando é pescado, os saltos, a luta frenética contra a morte? Ou será que preciso de vos meter dentro de um barco de pesca para verdes a mortandade dos inocentes, as redes assassinas cheias de seres que têm tanto direito a viver como os que vivem fora de água... Que raio de discriminação é essa, o que é que uns pulmões têm de mais respeitável e merecedor de compaixão do que umas guelras? Cavalo não comem, se for cavalo marinho já comem, que é isto?!...
Se os peixes andassem por aí aos saltinhos no meio da rua a respirar o mesmo ar que vocês respiram, certamente que não os classificaríeis de animais de segunda. Mas infelizmente eles andam esquecidos nos rios e no mar, estranhamente distantes, e não entram nas cogitações de quem se lembra de abraçar um cachorrinho, de pegar num coelhinho, de fazer festas a um bezerrinho, ou até de aconchegar pintainhos na cama como eu aconcheguei quando era garoto coisa que me saiu cara porque eles borraram tudo e eu levei uma valente tareia da minha mãe.
Se vivêsseis no mar como os peixes não teríeis coragem de abrir uma exceção na compaixão. Se eles vos viessem comer à mão, se vísseis como se deixam tocar e beijar, e como criam laços, não teríeis coragem de os comer. Eles não têm raiz, não têm caules nem folhas, não fazem fotossíntese, não lhes sobe a seiva pelo tronco. São animais. Por isso, ó ubianos pescetarianos, vos peço de mãos postas, vegetarianai-vos! Vegetarianai-vos, mas vegetarianai-vos a sério, a cem por cento, que isso de vos vegetarianardes com a exceção dos coitadinhos dos peixes é o mesmo que ter três peidos para dar e só dar dois…

Gondri


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pode-se ou não contrair a Covid-19 através de um gesto?


Estudos recentes efectuados na Universidade da Beira Interior, mostraram ao mundo que a Covid-19 pode ser transmitida através de um simples gesticular. Ao fim de quase um ano de estudo comportamental diário, chegou-se a tal conclusão porque a Directora Geral de Saúde - finalmente - entrou no quadro negro dos infectados com aquele vírus, fazendo um pouco jus àquela máxima do "olha para o que eu digo, não olhes para o que faço".

Se no inicio da pandemia se chegou a constatar por vídeos lançados na net sobre a forma ideal de abrir uma garrafa de água e despejar o seu conteúdo num copo, numa manobra que faria corar de inveja o Luis de Matos, tal a destreza de mãos demonstrada para o efeito, gerou-se por instantes a sensação que a senhora estaria imune à virulência tal a forma como a tratava por tu. 

Porém, ao longo do tempo, verificou-se igualmente que a dita senhora ia padecendo de um quadro sintomático que se poderia descrever como "muito confuso". Ainda estão presentes aquelas declarações que diziam que "é proibido sair de casa mas pode sair para passear o cão ou fazer pequenos passeios higiénicos". Pouca sorte para quem tinha gatos, periquitos ou guppies em casa, que nunca poderiam usufruir dos mesmos direitos que os seus parentes caninos. Cães e filiados no PCP estavam portanto imunes à bicharada e quem tivesse um militante em casa, poderia igualmente sair para passeá-lo.

Mas voltando ao cerne da questão questionou-se como é que a dita senhora contraiu tal maleita. Ora, para quem esteve com atenção aos tempos de antena que esta teve ao longo do ano, verificou-se que, para além da dita garrafa de água mais o imprescindível copo, Graça Freitas  fazia-se acompanhar da presença de um intérprete de linguagem gestual que não parava quieto. 

Antigamente, estes elementos apareciam numa janela no canto inferior direito do écran, isolados dos demais, como forma de traduzir o que estava a ser dito. E que se saiba, nessas alturas, ninguém contraía o que quer que fosse. Nem uma simples gastrite ou panarícios. Nada!

Ao se incluir no mesmo espaço um intérprete de linguagem gestual, mesmo que com o devido afastamento imposto pelas autoridades sanitárias, o que se foi constatando foi que aquilo era como uma bomba prestes a explodir. Como as partículas andam no ar, bastava ele dizer  - por gestos - que ia mudar de parágrafo - como se fazia outrora com as máquinas de escrever - e as partículas "envirusadas" que estivessem à sua direita, iriam ser transferidas para o seu lado esquerdo num abrir e fechar de olhos. Independentemente deste intérprete se encontrasse atrás dela, à esquerda ou à direita, informar o público que era proibida a deslocação aos courts de Roland-Garros ou Wimbledon, era um risco acrescido porque aumentava exponencialmente a difusão de partículas infectadas pelo ar circundante. O simples facto de se barrar manteiga no pão chegou a ser omitido nas declarações por agitar o ar em demasia e o que é um facto, é que ao longo deste tempo todo, nunca a ouvimos a fazer referência a isso. 

Portanto, a dita senhora encontra-se agora em quarentena devido a um perdigoto gestual que se deslocou do ponto A algures naquele espaço conferencial para o ponto B que se encontrava algures entre a narina esquerda e o lábio inferior, segundo se desconfia. E para piorar as coisas, em momento algum se vê o mesmo intérprete de luvas, como mandam as boas práticas sanitárias.

À directora da DGS endereçamos os nossos votos de rápidas melhoras e recuperação. E pensar que a vida é bela e que há que encontrar sempre esperança neste cenário apocalíptico em que nos encontramos actualmente. Marta Temido, dixit.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Porque é que não a obrou você?...

 

Em arte já nada me surpreende. Tem uns anos largos fui a uma bienal de arte moderna com uns amigos. Foi a primeira vez que me cruzei com a arte contemporânea ao vivo, e dali em diante fiquei tão confuso que tudo me parecia arte, até o cagar de um pássaro. Ao correr o salão onde as obras estavam expostas só as consegui distinguir porque cada uma tinha uma pequena placa identificativa, com o nome do autor, o nome da obra, e não sei se mais alguma coisa. O próprio quadro da eletricidade, ou o sítio do extintor (vide foto anexa), passariam perfeitamente por pertencer ao acervo de obras expostas, não fosse o facto de não terem a tal placazinha a identificá-las. Aquela foi a minha primeira vez, e eu não consegui explicar a mim mesmo o que raio estava eu ali a fazer, e porque é que aqueles autores eram artistas e eu não.
Bem, mas feita esta breve introdução vamos cá então à história que vos quero contar. Antes que pensem que é invenção começo já por esclarecer que não, que esta se passou comigo e foi decerto uma das saídas mais felizes que eu já tive. Feliz e espontânea,  como tinha que ser para ficar para memória.
Íamos então nós a passar em frente a umas tábuas que ali estavam, na vertical, e que tinham uma inscrição que as identificava como sendo uma obra, e exclamei, com escárnio e ironia:
- eh pah, p'ra fazer isto é preciso ser um génio...
Uma senhora que estava ali prantada, ao lado da obra (supostamente a autora?!...), afinou e reagiu, ainda assim educadamente:
- olhe, desculpe a intromissão, mas se o senhor diz, em tom de gozo, que é preciso ser um génio para fazer esta obra, porque é que não a fez você?...
E eu, em menos de nada:
- é que eu não sou génio, sou hidrogénio, e como sou mais leve do que o ar, subo e bato com a cabeça no teto, e fico tão atordoado que não sou capaz de compor tão maravilhosa obra de arte...
A risada foi geral. (Geral, salvo seja, a senhora ficou com cara de pau, sorriso zero). E nós lá seguimos, em direção à obra seguinte, deixando um rasto de riso pela sala...
Ou seja, aprendi por aquela senhora que o que conta para que alguma coisa seja tomada como obra de arte é o facto de o seu autor se lembrar de a fazer. Isso para mim é ótimo porque por acaso até sou pessoa de me lembrar de muitas coisas, o que joga a meu favor porque a coincidência de alguém se lembrar do mesmo e me tirar a originalidade é muito reduzida. Aliás, agora que falamos nisso, até me estou aqui a lembrar de uma coisa que muito provavelmente não passa pela cabeça de mais ninguém. Vou obrar no meio de uma exposição de arte moderna, vai ser um poio bem grande, um produto da minha desassimilação e da minha má educação bem visível e mal-cheiroso. E se alguém chegar e reclamar da obra como eu reclamei das tábuas verticais da outra, digo-lhe o mesmo: - porque é que não a obrou você?..

Gondri