sábado, 5 de dezembro de 2020

O Gonçalves e o gonçalvismo são duas doutrinas políticas…

 


Quando, na minha última crónica, a dos pescetarianos, fiz referência ao “gonçalvismo”, veio-me imediatamente à cabeça a fase revolucionária do pós-25 de Abril, então batizada disso mesmo, de “gonçalvismo”. Não entrei no entanto por aí para não estar a misturar filosofias alimentares com história política, ou, dito de outro modo, para não maçar. E passei à frente, deixando a coisa p’ra trás.
No entanto o meu amigo Fernando Merino, com a sua habitual acutilância, não me deixou esquecer a coisa e trouxe o gonçalvismo para os comentários. E eis que, de repente, quase milagrosamente, se fez luz aqui dentro desta caixa onde guardo os miolos e me lembrei de uns versos que escrevi, andava eu a estudar em Lisboa, no liceu D. João de Castro, faz alguns 45 anos. Parece de facto milagre eu me lembrar disso, rigorosamente, palavra a palavra. Não os tenho escritos, é mesmo só de memória. É certo que nestes longos anos relembrei-os algumas vezes, não muitas, em conversas com amigos, e talvez isso também tenha ajudado a mantê-los ativos no consciente. Mas, mesmo assim, tê-los frescos como se os tivesse escrito ontem, apenas por via oral, ao fim de quase meio século…
Como já tive oportunidade de esclarecer, tenho uma memória de libelinha, passo inclusivamente vergonhas com as pessoas por causa disso. Mas há coisas, uma ou outra, que ficam gravadas a ferro e fogo. Não sei porquê. Uns versos adolescentes sem os quais eu jamais me lembraria que na minha turma de então tinha um colega que se chamava Gonçalves, outro de alcunha o “peru”, e outro o “críticas”.
Na altura morava na Trafaria, no outro lado do rio. Apanhava o barco para Belém e depois ia de elétrico para o liceu. Estive em Lisboa no dia 25 de Abril de 1974. O que me lembro com mais relevância é de chegar a Belém e de ficar parvo a olhar para uma estrada que tinha o alcatrão todo abatido pela passagem dos chaimites de guerra. Acho que não me lembro de mais nada de especial. Nos tempos que se sucederam é que se instalou a confusão, na escola e em todo o lado. O período revolucionário em curso entrou em paranoia, todos os vandalismos e mais algum eram permitidos, nacionalização da banca e dos setores estratégicos, ocupações, saneamentos na reforma agrária, etc. Vasco Gonçalves era o primeiro ministro, vivia-se então a fase do gonçalvismo.
Estávamos nos longínquos anos 70. Os computadores não passavam de ficção científica, precisávamos muito mais uns dos outros para nos divertirmos. E escrevíamos poemas. O Jorge, um dos meus amigos lá da Trafaria, era de partir o carolo a rir quando trazia um poema novo. Passava-se completamente, só lhe faltava entrar em transe. Um dia chegou com um ar apoteótico, “hoje escrevi um poema muitá profundo”. “Como é que é Jorge, lê lá!”. Não precisou de ler, disse-o de cabeça “Deus é, reticências”. E conforme o disse deitou as mãos à cabeça, esfregou os cabelos com toda a força, punhos e dentes cerrados, todo maluco com tanta emoção, “tás a ver, meu, altamente, Deus é, três pontinhos, é um mistério tás a ver?!…”. “Só isso, Jorge, Deus é, três pontinhos?!”, perguntei incrédulo. “Claro, Deus não tem explicação, os três pontinhos deixam o mistério no ar, ah, cá gandá emoção…”. Era doido de todo, aquele Jorge…
Eu lá escrevia também os meus poemas. Já se foram todos, levados na levada do tempo. Todos exceto o que me trouxe aqui para esta crónica. Minto, também me lembro de um que me valeu uma reprimenda do Carlos Barra, também meu amigo e crítico de serviço de então. Era assim:

“É a menina sagrada
Indolente como a lua
E ressona sossegada
Na minha cama dourada
Que é a luz em que flutua…”

Fui todo contente a mostrá-lo ao Carlos. E levei cá um baile que até andei de lado. “Então tu vens com essas palavras todas bonitas acerca da menina, e depois dizes que ela está a ressonar?!...”, disse o Carlos, e troçou de mim quanto pôde, à gargalhada. Outros tempos…
Mas, antes que me vá embora sem dizer os versos do gonçalvismo, vou mas é soltá-los de uma vez por todas, não vá isto acabar sem eles. Então é assim, vamos cá dizer:

“O Gonçalves e o gonçalvismo
São duas doutrinas políticas
Criticadas pelo Críticas
Homem de cravo encarnado
Que atravessa o Tejo a nado
E chega à Trafaria
Onde é sempre recebido
Com imensa simpatia
Pela coninha da tia
E ainda p’lo Peru
Rapazinho mui baixinho
Que tem um grande cuzinho
E caga rochas detríticas,
De que gosta muito o Críticas…”.

Quase meio século depois, e tenho-os na ponta da língua. A qualidade é pouca, mas não é disso que se trata. O que estes versos têm de especial, para mim, é o facto de já fazerem parte da minha mobília craniana. Uma memória assim num tipo que é uma nulidade em termos de memória não deixa de ser, pelo menos, inacreditável. Para mim é um mistério…

Gondri


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