quarta-feira, 29 de julho de 2020

Há petróleo na UBI





Rod Stewart, uma rouquidão macia, lisa e espessa, com traços de mel. Um crepúsculo ameno e vaporoso, e a promessa de lua persistente em vagarosas noites de paixão…
 
O meu coração treme. Não posso com estas melodias de Rod Stewart, caio para trás, no tempo, mesmo em cima daquelas noites cálidas, à varanda, na residência de Santo António, extasiado com as estrelas e apaixonado pela minha própria existência. Sinto falta dessa poesia, a crueldade do tempo enrugou-me a luz dos doces anos. Que pena não poder regressar àqueles dias virtuosos para trazer, um átomo que seja, do ar que já ali respirei, nos longínquos eighties.
Cai sempre uma lágrima, não apenas água e cloreto de sódio, alma também, a alma daqueles vinte aninhos que não voltam mais, a lembrança do tempo em que o futuro ainda estava todo por acontecer. Éramos jovens, cobertos de livros, de perguntas e respostas, mais perguntas do que respostas, e de sonhos. 
Às vezes faziam-se longas e interessantes tertúlias a quatro (ou a mais, quando se juntava malta de outros quartos). Falava-se de tudo, até dos temas mais profundos da metafísica. Lembro-me de uma noite em que ficámos na varanda, escoltados pelas estrelas, quase até à hora do galo cantar, a discutir a existência, ou não, de Deus. Como não podia deixar de ser, chegámos ao fim sem conclusão nenhuma. Se em vez de uma noite fossem milhões de noites, chegaríamos ao fim como no princípio, tão ignorantes como o galo que cantaria dali a pouco. Em matéria de vida e de morte, da existência ou não de um Ser supremo, não diferimos em nada dos animais. A diferença é que temos consciência do problema e eles nem isso, não têm neurónios que cheguem para a filosofia. Mas, no que concerne a respostas, estamos igual. Sabemos que há um segredo no cosmos irrevelável, mas, se não o soubéssemos, saberíamos o mesmo.
Naquela altura não havia telemóveis nem portáteis, valíamo-nos muito mais uns dos outros, cometíamos os maiores devaneios, alguns que, reconheço, mereciam uma sova de pau de marmeleiro. Até guerras aquáticas chegámos a fazer, usando sacos de água como arma de arremesso e deixando tudo alagado. Claro que merecíamos que também nos alagassem as ventas, mas, naquela altura, a idiotice era tanta que não conseguíamos ver o óbvio. Uma vez, a tentar lançar um saco de água para a varanda de cima, quis a gravidade que o saco regressasse e me caísse merecidamente em cheio nas trombas, que até me vergou contra o parapeito da varanda. Desmanchar camas e esconder as peças era o pão de cada dia, e, quando as luzes se apagavam, era um voar de sapatos pelos céus do quarto em guerras insanas, mas que, valha a verdade, eram de partir o coco a rir. Éramos muito crianças e vínhamos com a corda toda, só queríamos paródia. Estávamos habituados a divertir-nos em grupo, a grandes saraus de anedotas, a grandes sessões de gargalhada. Esta coisa moderna de ficar isolado à frente de um écran era desconhecida na altura. Eram outros tempos, muito mais animados e com muito menos solidão. E mais românticos, que o digital ainda não estava entranhado como agora, que gira tudo artificialmente à volta de zeros e uns, tudo previsível e exato, como só as coisas da alma não o são.
Às vezes penso como serão agora as noites da residência, décadas depois. Tudo agarrado aos telemóveis e ao portátil, e um silêncio ensurdecedor. Uma vez ou outra, naquelas noites mais quentes, lá descansam do écran e vão conversar um bocado para a varanda, conversas muito à frente, tipo,
- eh pah, o bruxo de Fafe disse que há petróleo na UBI. 
- ai há?!... e como é que agora se vai tirar dali a UBI para perfurar o solo?
- bem, se o petróleo for em grande quantidade, na volta até se justificava tirar dali a UBI e reconstrui-la noutro sítio.
- sim, mas para isso tinha que haver petróleo para um século, porra!
- claro, tinha que pagar a demolição desta, a reconstrução de outra, e ainda tinham que sobrar milhões de milhões para os cofres do estado…
- isso era um balão de oxigénio do caraças para as finanças, assim até eu mandava construir outra e mandava abaixo esta…
- mas afinal já alguém sabe quanto petróleo é que há lá?
- Acho que não.
- Atão?!...
- pois, esse é que é o problema, para se saber tem que se perfurar a ver, e p’ra isso já tinha que se tirar de lá a UBI.
- e não dá para fazer o buraco num espaço livre que haja lá dentro?
- acho que não, aquilo acho que é preciso muita maquinaria, ocupa bué de espaço…
- pois, mas o que é que diz o reitor? E o governo?
- sei lá, é a primeira vez que oiço falar nisto.
- Isso não é assim, é preciso ver qual é a empresa que vem fazer a exploração, quem é que tem o know-how, essas cenas todas…, não é carregar num botão e já está.
- chamem a Isabel dos Santos, de petróleo percebe ela…
- pois, agora é que vai ser mamar.
- não, brincas…
- isto é um país de corruptos, imagino o que estes gajos se vão abotoar…
- nem o juiz Carlos Alexandre nos vai valer…
- ai, podes crer!
- mas ouve lá, já agora como é que o bruxo de Fafe sabe que há petróleo na UBI?
- sabe porque um sobrinho dele anda na UBI e há dias trouxe uma garrafinha de meio litro. Disse que era para fazer umas experiências no laboratório.
- ó porra, então vês-nos aqui a falar de exploração de petróleo na UBI e não dizes nada?
- pois, realmente eu não estava a perceber nada…
- e o que é que tu percebes, ó parolo?!...
- não me chames parolo!
- chamo-te o quê, Maria Leal?!
- ui, isso é que não, mal por mal é melhor parolo…
- Tu vê lá, se quiseres também te posso chamar australopitecos…
- qu’éssa merda, australo quê?...
- pitecos.
- ó pah, vamos mas é dormir que estas conversas com bué de substrato dão-me tipo um sono do caraças.
- ok, vamolá então.

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