segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO VI - ABENÇOADO SEJA QUEM INVENTOU O DESCANSO

 

 

Após um lauto repasto, onde a Micas e a Marina se esm(erd)aram valentemente e após a limpeza das baixelas usadas para o efeito, o grupo foi acometido de uma modorra tal, que se deixaram ficar a repousar por uns largos momentos. O silêncio que se apoderou daqueles instantes só era cortado por algum reparo, observação ou, mais ao longe, por alguma exaltação proveniente da criançada que vinha em modo de turista, junto dos seus progenitores. Seriam umas três da tarde e o Covão apresentava já um numero considerável de visitantes, mas não em número suficiente para estorvar ou se intrometer com os demais. Tirando um cachorro ou outro que de vez em quando vinha cheirar aquela malta ali à volta da fogueira, não foram incomodados por mais nada nem ninguém. A uns metros dali, alguns putos reguilas, chapinhavam no regato que por ali passava, ignorando por completo a extensão que este ocuparia no território.

Todos tinham tomado a (boa) opção de se enfiarem em sacos cama, a fim de poderem usufruir do calor da fogueira e dos corpos, bem como do ar fresco, - menos frio que de manhã, - e do espaço envolvente. Vanessa e Ildefonso, bem aninhados um no outro, em conversa privada. Dos restantes, aqui e ali, um tema lançado à conversa mas sem grande profundidade. Apreciavam a beleza do local, interrogavam-se sobre o nome deste ou daquele cântaro ou sobre extensão daquele Covão. Mas, para já, nada de temas mais elaborados que os pusesse a pensar muito.

Até o Chico estava mais calmo. Tanto a Micas como a Carla, imbuídas num espírito solidário, decidiram ladear o beirão, o que o deixou tão sossegado quanto inquieto. O que era um estado híbrido demasiado estranho para aquela alminha. Mais para mais, porque se sentia compelido a antecipar a noite com a Micas e não estava a dar grande atenção à Carla. Esta situação não passou despercebida a ambas que ainda gozaram um pouco à custa da coisa. Inteligente como só ele podia ser, achava que tinha carta branca para avançar com a conimbricense logo que se proporcionasse, mesmo tendo aquele colosso de carnes à ilharga.

No sossego de outro "ninho", O Dominic fazia a sesta junto da Marina, que aproveitou para pôr a leitura em dia com uma revista "cor-de-rosa" que tinha comprado dias antes. O "Lupas" mais o Alfredo, a Andreia e o Osório, jogavam "Carcassonne", um jogo de tabuleiro que ela tinha levado.

Ao abrigo do saco-cama, Ildefonso e Vanessa faziam o ponto da situação sobre o que "poderia estar a acontecer-lhes". Muito timidamente, iam aqui e ali, demonstrando o que estavam a sentir, não só quanto ao fim de semana, mas principalmente sobre as expectativas que tinham em relação ao outro. Encontravam-se em posição fetal, encarando-se, a fim de poderem se perscutarem mutuamente. Ambos falaram um pouco dos seus passados e expectativas. Vanessa queria deixar de lado aquela imagem de "vamp" que tinha pois achava que com Ildefonso, tudo poderia ter outro significado. Também não estava a ser fácil lidar com alguma fama que ela estivesse a criar na Covilhã e o facto de estar a baldar-se para as aulas não a ajudava minimamente no seu percurso académico. Ele, por seu lado, confidenciava que estava a gostar imenso de a estar a conhecer e que ela poderia muito bem ser a "tal" com quem ele poderia estar mais tempo. Longe das "luzes da ribalta", ela estava a revelar uma faceta bem mais atractiva do que a imagem que tinha criado. E que podia ser uma mais valia para que esta retomasse o gosto pelo estudo e recuperasse o tempo perdido com um pouco mais de esforço. Podiam juntar-se para estudar. O que seria benéfico para ambos. Concordavam que qualquer um deles poderia ser a muleta do outro sob todos os aspectos. E mesmo que "aquilo" não resultasse, poderiam continuar a ser bons amigos porque ainda não tinham motivos para deitar tudo a perder. Isto deixou Vanessa um pouco desconfortável. Ainda não tinha dito a Ildefonso o que a movia relativamente a ele e achava que este já lhe estava a tirar o tapete debaixo dos pés. Ildefonso notou a reacção que isto lhe provocou e beijou-a gentilmente na mão. Recuperando o fôlego, disse:

- Mas antes quero saber o que posso ganhar e o que posso perder... 

Vanessa adorou esta resposta. Agarrou-o de tal forma que por pouco este ficou sem ar. Retribuiu com um beijo "a sério", sofregamente. Literalmente desatou a comer aquela boca toda. Naquilo que para eles parecia uma eternidade onde desta vez as mãos desataram a explorar os corpos um do outro o mais que podiam e onde o Barnabé marrava e lutava contra tudo quanto era obstáculo, alguém fora daquele saco gritou:

- Hey! A marmelada é longe daqui e longe das nossas vistas! Já vos avisaram!
- Do que vocês precisam é de um banho frio!! E como vieram ao mundo! - berrou outro.
- Deixa alguma coisa para logo!! - ouvia-se noutra voz.

A algazarra não tinha fim, uns contra, outros incitando, mas por fim, tanto Vanessa como Ildefonso se viram obrigados a parar, rindo com a situação.

- Ok...! Ok...! Nós paramos! Mas logo não se queixem!! - Brincou Ildefonso.
- "Dá-lhe", carago! Estronca-a toda! - Gritou o Chico.

- Hééééééé Caralho!! Tás parvo, meu??? Isso é porco!... Muito mau!! - Muito mau mesmo! Que boca mais foleira... - Insurgiu-se o Alfredo.

O Chico acusou o toque. Pediu desculpas e aninhou-se no saco cama, tão envergonhado quanto uma criança que é apanhada em falso a mentir.

- Foda-se, ó Chico! Tens de te controlar, pá. Isso não são bocas que se mandem!! - Interrompeu a Andreia.

- Ehpá... desculpem-me. Saiu-me sem querer...
- Essas coisas não saem "sem querer". Tens de ter mais cuidado. Uma coisa é brincar, outra coisa é ser-se estúpido e malcriado. - ralhou-lhe a Micaela. - Já tens idade suficiente para saber o que é brincar e o que é ser-se parvo. Assim não vais longe...

- Mas... mas... - balbuciou o moço, antevendo a iminência de uma noite de solidão na tenda, pois a Micas estava a dar-lhe todos os sinais de que a boca tinha causado estragos valentes e que os planos para a noite tinham ido por água abaixo.
- "Mas-mas", uma porra! Vê se cresces! Haja paciência para tanta imaturidade!
- Já chega!! - bradou o Ildefonso. - Já passou. Vocês têm razão! Não devíamos ter passado das marcas. A culpa foi nossa...

- Culpa? Que raio queres tu dizer com "culpa"? - contrapôs a Vanessa, agora indignada com Ildefonso - Já não se podem manifestar emoções só porque alguém se vai sentir melindrado? Era só o que mais faltava!! Ter de tolher o que as pessoas sentem porque há um que passou o dia todo agarrado à pila e "ai coitadinho... ninguém pode dar um beijinho senão ele chateia-se???!!!" - Mas 'tá tudo parvo ou quê? Ninguém tem culpa que ele tivesse vindo sozinho. Agora estar toda a gente com paninhos quentes porque há alguém sozinho e a choramingar pelos cantos não me parece muito lógico. Daqui a bocado tem de se pedir autorização ao Chico para se mandar uma queca, queres lá ver???!!! E ainda ter de gramar com bocas destas?!! Tão depressa é um coitadinho e depois vira uma besta!!! Que boca mais porca...

Vanessa estava fora de si e a todo o gás. Ildefonso tentava acalmá-la mas em vão. Vendo que o ambiente poderia piorar, levantou-se, esticou a mão na sua direcção e pediu-lhe para irem dar uma volta. Vanessa acedeu, danada, e saíram dali. Estava visivelmente consternada com a situação. Ildefonso abraçou-a pelos ombros e afastou-se com ela para mais longe.

Junto ao acampamento ambiente azedou. Os minutos que se seguiram foram de cortar à faca tal o constrangimento instalado. O Chico estava visivelmente incomodado com a situação. O pessoal continuou calado, interrompendo o silêncio com alguma observação, principalmente os quatro que retomaram o jogo que a espaços faziam uma qualquer observação sobre o mesmo. A Micas tinha-se recolhido para a tenda. A Carla tinha-se mantido à parte da confusão, mantendo-se no mesmo local junto do rapaz. A Marina acordara o Dominic mas para estes a confusão tinha passado ao lado. Decidiram ter uma posição isenta para não espicaçar mais as hostes. A Carla decidiu ver se conseguia quebrar um pouco o gelo e questionou o Chico da forma mais frontal que pôde:

- Que se passa, miúdo? Há alguma coisa que queiras desabafar. Algo que ainda não tenhas dito a ninguém?
- Não. Nada. Deixa-me em paz!

- Vá lá! Não te acanhes. Já toda a gente percebeu que estás transtornado por estar sozinho aqui. Só quero que saibas que alguns também estão aqui na mesma situação que tu e não vem mal nenhum ao mundo. Conta lá. O que te preocupa?
- Nada me preocupa. Apenas que me sinto uma carta fora do baralho. Só isso. E já não é pouco.

- Ai rapaz! A sério? Olha para mim! Achas que é fácil ser-se assim como tu me vês e saber que pouco ou nada tenho feito para mudar isto? Esta coisa grotesca? Achas que é fácil teres constantemente uma vontade enorme de comer este mundo e o outro? Achas que é fácil controlar-me? Quando vocês são os primeiros a porem a Carla longe da comida, achas que é fácil para mim? Algum de vocês se põe no meu lugar? Claro que não, e bem sei que não o fazem por mal. Mas achas que isso me afecta a ponto de estragar um fim de semana que pode ser divertido? Nem penses! E mais: achas que uma beleza estonteante como esta tem facilidade em arranjar amigos para conviver? Quem é que quer sair com a gorda? Pensa nisso! E se os conquisto, agarro-me a eles com unhas e dentes, pois todos são preciosos. Como é o caso deste grupo. Por isso, respira fundo, pensa nisto que te acabei de dizer e depois diz-me o que achas. Se eu sou diferente, tu não tens nada de diferente! Somos iguais, amiguito. Iguaizinhos! Por isso não me fales em cartas fora do baralho...

O Chico caiu em si com este "baile" que levou. Não um que o pusesse mais em baixo do que já estava. Dentre todos, a Carla "destoava" mais do que ele. Só que conseguia dar a volta à situação. Tinha-lhe dito o que ele precisava que alguém lhe dissesse, sem ficar com a sensação que alguém o estava a espezinhar como normalmente os outros faziam, ainda por cima de forma impiedosa. Agradeceu a frontalidade. Tinha de se acalmar. Ia custar, mas tinha de se acalmar. E mudar.

- Achas que deva dizer alguma coisa à Micas? - questionou.
- Não. Pelo menos para já. A Micas gosta de ti. Como todos aqui presentes. Mas neste momento está muito sentida contigo. Acho que deves é um pedido de desculpas à Vanessa, principalmente. Da Micas trato eu. Agora vê se não pensas no que não deves e relaxa. Daqui a uns anos ainda nos vamos rir disto tudo.

Um pouco mais longe, encostados nas bancas das merendas, Vanessa e Ildefonso discorriam sobre o acontecido. A miúda ainda enxugava algumas lágrimas, emocionada com o que se tinha passado. Carinhosamente, Ildefonso pegou-lhe no lenço de papel e limpou o resto.

- Acho que estiveste um pouco mal há bocado. Podias ter-me defendido e não o fizeste. - queixou-se a Vanessa.
- Tentei interromper-te várias vezes e não mo permitiste. Mas não é isso que mais interessa. Tiveste toda a razão do mundo para dizer o que disseste. E eu fui parvo em ter pedido desculpas. Toda esta situação me está a deixar nervoso e acho que também estás a sentir o mesmo. Só quero que saibas que o Chico não é um gajo assim tão mau quanto o pintaste. É muito ingénuo mas tem um coração muito grande.
- Eu sei... quer dizer... pelo pouco que vou vendo, sei que ele não é má pessoa. Mas aquela boca deixou-me possessa. Mais do que as outras que me fizeram rir. Aquilo foi porco. Muito porco. Não estava à espera... por muito a jeito que pareça "lá fora".
- Ouve... um dia destes conto-te umas histórias acerca dele, que vão ficar só entre nós dois, mas vais chegar à conclusão que o rapaz é mais inocente do que mostra. São de partir a moca a rir. O miúdo, por vezes, não dá para mais e acredita, não é por mal. Mas tem outras que te irão deixar de boca aberta. Sabias que ele uma vez se atravessou numa rua para salvar uma miudinha de sete anos de morrer atropelada por um carro? Levou uma panada numa perna e teve de fazer gesso durante um mês. A miúda saiu ilesa e sem um arranhão. Ele só perguntava se ela estava bem, até ter chegado a ambulância para o levar ao hospital. O Chico é uma espécie de super herói trapalhão que só usa cuecas... - gracejou. - Olha... Queres voltar para o acampamento? Eu preferia continuar aqui mais um pouco a retomar o que nos interromperam...

Vanessa abraçou-o como que a dizer: “Daqui não saio e daqui ninguém me tira!”

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