sábado, 13 de junho de 2020

A importância da sinuosidade das nádegas do caloiro na conformação em hélice da molécula do ácido desoxirribonucleico




Quando cheguei pela primeira vez à residência universitária de Santo António a veteranada estava toda de garras afiadas à espera dos caloiros. Não tenho aquela memória apurada que vejo que alguns colegas meus da altura ainda têm, os pormenores já se me evaporaram no éter do tempo. Mas lembro-me basicamente que aquilo foi durinho, tomei banho de água fria vestido, tive cama à espanhola, além de que, sem tábuas por baixo, o colchão só parou no chão quando me fui deitar. Fui humilhado, ostracizado e vilipendiado q.b, fui tratado abaixo de pessoa. Na perspetiva dos veteranos eu não era um praxado fácil, achava piada a tudo, e considerando que um dos princípios filosóficos da praxe era desanimar o caloiro, comigo o falhanço era total. Se calhar até ainda levei mais no cachaço por causa disso…
Entretanto o tempo passou, naturalizei-me veterano, e chegou a minha vez de praxar. E só vos digo uma coisa, se o meu juízo final depender da forma como me portei com os caloiros, vou direitinho para o céu. Eu não fiz aos caloiros um milésimo do que me fizeram a mim, não os maltratei, não os assustei, não lhes infligi nem a mais levezinha das dores. As praxes que fazia eram para veterano rir, e se alguma coisa de facto eu infligia aos caloiros era a humilhação intelectual de mostrar ao mundo como eles eram burros. Praxe era sessão de gargalhada, e, se no início os caloiros se sentiam intimidados por não saberem o rumo que aquilo ia levar, por fim até já se soltavam e entravam na festa.
No fundo as praxes consistiam numa sessão de perguntas e respostas, e sempre com aquela ironia sádica tipo “você não sabe uma coisa tão cagativa, caloiro?!..., porra, que você é mesmo burro!...” Pelo meio vinham aquelas perguntas sem pés nem cabeça, tipo quantos litros de flatulência à pressão atmosférica é que o Bocage libertava por dia e se eram mais ou menos do que as torradas que o Shakespear comia ao pequeno almoço…
Além do sarau hilariante de perguntas e respostas, vinham depois as composições que o caloiro tinha que escrever subordinadas a um determinado tema. Normalmente o caloiro tinha vinte e quatro horas para redigir o seu texto. Levava o tema num papelinho e lá ia ele com a obrigação de se apresentar no dia seguinte com a sua composição escrita. Escusado será dizer que os temas eram verdadeiras aberrações, e eu ficava sempre na expetativa de ver até onde chegava a imaginação dos caloiros. De todos os temas com que os desafiei há um que nunca mais esqueci (aliás até o incluí no meu livro das paranóias). Pegue lá, caloiro, amanhã quero ver isso. Assim que lhe pus o papelinho nas mãos e ele viu o que o esperava, ficou com cara de morto. Tinha que dissertar à volta do tema “A importância da sinuosidade das nádegas do caloiro na conformação em hélice da molécula do ácido desoxirribonucleico”. Só me lembro de ele me dizer, desanimado, “não consigo”. “Tem que conseguir, caloiro, senão tá lixado!”, respondi à veterano mau.
E no dia seguinte o coitado do caloiro lá me trouxe o seu texto.  Triste e desolado, disse-me primeiro, para me preparar para a desilusão: “foi só o que consegui”. E eu olhei para a folha de papel e estava lá apenas isto: “A sinuosidade das nádegas do caloiro é muito importante para a conformaçãso em hélice da molécula do ácido desoxirribonucleico”. Desmanchei-me a rir a bandeiras despregadas. Ainda não tinha parado de rir e já estava a intervalar uma investida verbal com as gargalhadas, “você é mesmo burro ó caloiro, zurre lá”. O caloiro nada. “Vá lá caloiro, zurre”, “zu quê?”, “então você não sabe o que é zurre?”, “eu não”, “então você não conhece o verbo zurrar?”, “ah, zurrar conheço”, “então…”, “e eu é que tenho que zurrar, é?”, “não, queres ver que sou eu…”. O caloiro achou piada àquela minha estocada final e, deixando escapar um sorriso, deu três ou quatro zurradelas e pôs toda a gente a rir, ele incluído. Aliás, o único talento que mostrou foi o de zurrador…
Em suma, as minhas praxes eram inócuas e engraçadas. E, deixem-me alimentar o ego, acho que até os caloiros ficaram com saudades...

Gondri


2 comentários:

António Matias disse...

Velhos tempos... e muita saudade.
Adorei este "back in time"

Jorge Santiago disse...

Bom Gondri, muito bom mesmo.
Tenho algumas para publicar um dia.
Abraço.