Às vezes ponho-me a andar para trás no tempo a ver se me salta da memória qualquer coisa que mereça a pena ser contada, que não seja palha para conversa. E foi assim que me surgiu uma história curiosa que se passou na cadeira de Colorimetria, com o prof Lucas.
Os computadores ainda davam os primeiros passos. A turma dividiu-se em grupos e cada grupo tinha a tarefa de fazer o seu programa, em linguagem Basic. O professor Lucas, que se tinha doutorado na América e sabia a potes de linguagens de programação, era o professor da cadeira.
Quando eu e os colegas do meu grupo acabámos o trabalho, fomos ao computador para correr o programa. Mas o programa dava erro. Verificámos tudo na expetativa de encontrar alguma passagem menos lógica, alguma contradição, qualquer coisa que pudesse justificar a inoperância do programa. Mas nada. Continuava a não correr.
Depois de tentarmos tudo, e já desiludidos com a nossa performance informática, fomos ter com o professor Lucas, “o programa não corre, professor, não sabemos porquê”. O professor deu-lhe uma vista de olhos e disse imediatamente, “tem que correr”, e nós de resposta, “pois professor, tem que correr mas não corre”, “então vamos lá ver se corre ou não corre”, disse. E lá fomos nós com o professor. E o programa não correu.
Já algo impaciente, o professor Lucas voltou a confirmar a lógica das instruções, passo a passo, e estava tudo bem. Só encolhia os ombros, olhava para nós com cara de surpresa, “não percebo, isto está tudo bem, o programa tem que correr…”. Já estava de todas as cores, uma pilha de nervos, e quanto mais vezes olhava para o programa mais vezes se irritava. E assim ficou por largos e largos minutos, cada vez mais convencido de que só lhe restava desistir.
Até que, de súbito, soltou-nos um riso tépido, e, apontando para o erro, disse, incrédulo, “e ninguém vê isto?!”. E ficámos todos, ele incluído, com cara de parvos a olhar para o óbvio.
O cérebro humano tem esta característica de não se dar bem com os extremos, nem com o que é demasiado difícil nem com o que é demasiado fácil. Ao demasiado difícil não lhe chegamos porque está alto demais, ao demasiado fácil não lhe ligamos, passamos por ele e não o vemos.
O professor Lucas, que sabia demais daquilo, focava-se é na construção do programa, na lógica da linguagem, tentava perceber alguma incongruência que confundisse o computador. Mas, por mais que se debatesse com o monstro, a verdade é que daquela vez não saía dali.
Até que, já em desespero de causa, lembrou-se finalmente de olhar para onde ninguém olha: para a numeração dos passos do programa. Como sabemos as instruções são numeradas, vide ex. seguinte:
1Ø LET X= …
2Ø IF X = … THEN …
3Ø etc…
4Ø etc…
ora, sem darmos por ela, tínhamos trocado a sequência dos números, e aquilo que devia ser 1Ø, 2Ø, 3Ø, 4Ø,…, sempre em ordem ascendente, num determinado ponto da sequência estava trocado (é óbvio que ao fim de tanto tempo eu não me lembro em que ponto da sequência é que a coisa estava trocada, mas imaginemos que em vez de estar 4Ø, 5Ø, 6Ø, estava, por exemplo 4Ø, 6Ø, 5Ø. Por muito certas que estivessem as instruções, é óbvio que o programa não podia correr.
De facto faltou-nos ali um ignorante que, não percebendo nada de programação, se focasse na única coisa que percebia: a numeração. Às vezes é preciso ser burro para ver o óbvio. Tinha-nos resolvido o berbicacho…
Gondri
Gondri
1 comentário:
Conheçi o prof Lucas dentro e fora da instituição académica, pessoa afável mas persistente no seu trabalho, culto e sabia mesmo muito dessa matéria e de outras ligadas ao têxtil.
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