segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO III - SUBINDO A SERRA

 

Malas arrumadas na camioneta e lá se partiu serra acima naquela manhã de Sábado. Uma manhã com alguma neblina mas com visibilidade aceitável para a época do ano. O ar passava gélido fustigando agrestemente a cara dos viajantes mas sem provocar grande incómodo. Típico de um dia frio de Dezembro e nada a que alguns já não estivessem habituados.

Paragem obrigatória na Varanda dos Carqueijais apenas para "cumprir calendário" já que ainda mal a viagem tinha começado. Um pouco mais acima, avançavam as obras de reconstrução do antigo Sanatório, edifício que se encontrara, durante anos, num lamentavelmente estado avançado de decrepitude que metia dó. As memórias ainda se mantinham bem como os seus traços arquitectónicos principais, mas por dentro a remodelação teria de ser total por forma a transformar aquele antigo centro clínico de recuperação de doenças do foro respiratório numa unidade hoteleira de gabarito. Ainda para mais porque na sua envolvente, havia algo que muito poucos do mesmo ramo se poderiam gabar: uma vista formidável sobre a Cova da Beira. Na ingenuidade típica de malta daquela idade, ficou a promessa de repetirem a proeza dali a vinte anos a fim de usufruírem dos luxos e comodidades que aquele espaço poderia proporcionar.

Seguiram viagem com paragem para o primeiro café nas Penhas da Saúde. O Dominic referiu em jeito de gozo que se fizessem várias paragens, a sensação de uma viagem grande seria transmitida muito naturalmente. A neblina tinha desaparecido, oferecendo a todos a magnifica visão da Serra em toda a sua majestosidade. Pedra sobre pedra, vegetação escassa, as árvores meio despidas em consequência do fim do Outono e aqui e ali, algo que se pudesse identificar com um animal. Um dia bestial para acampar, portanto. Mas frio como o raio.

 

Ildefonso e Vanessa iam lado a lado a curtir a paisagem, ainda meio ensonados mas à conversa. À sua frente tinham-se instalado a Andreia e o Zé Remígio. A primeira, era de Tancos. Estava já na segunda matrícula e tinha praxado quase todos os que a acompanhavam nesse fim de semana, exceptuando o Alfredo (ou Pombinhas de nome de guerra) e a Micaela, também conhecida por "Laranja-Mecânica", que era uma luso-holandesa a viver em Coimbra desde que se lembrava que era gente e que a tinham praxado a ela. Antigamente havia o hábito de atribuir alcunhas para todos os alunos, ou pelo menos, para aqueles onde sobressaía algo que lhes era característico ou que haviam tido o azar de dizer "algo a mais" durante os inícios da praxe aquando das matrículas. Por este motivo, todos naquela camioneta tinham "cognomes". Nem mesmo Vanessa, a "Airbags" (por motivos óbvios) ou Ildefonso, o "Padreco", conseguiram escapar desse baptismo. Acompanhavam-nos igualmente a "Sargenta", de Tancos, a "Berlaitadas" do Funchal, a "Sherman" de Castelo Branco, o "Franciú", da Gafanha da Nazaré, o "Teleponto", de Beja e o "Pívias", do Pínzio. O Zé Remígio era conhecido pelo "Lupas", dada a quantidade de dioptrias dos óculos que usava e vinha de Tavira. Todos, de uma forma ou de outra, acabavam por substituir os seus nomes pelas suas alcunhas quando estavam em grupo. No entanto, tal não sucedia durante o tempo de aulas. Havia algum cuidado em não se achincalharem individualmente quando na presença de outros. O que, de certa forma os tornava ainda mais coesos e com um bom espírito de grupo.

Por ora, o ambiente dentro do veículo ainda acusava alguns bocejos, muito por conta da quase directa feita na noite anterior. As malas tinham sido já feitas para, de acordo com o ritual estudantil, ter-se a noite de sexta por conta da romagem aos bares da zona. Ildefonso e Vanessa dormitavam aninhados um no outro, a fim de poderem estar mais despertos para o resto do dia. Ela nas suas sete quintas, esparramada no banco. Ele servindo-se das almofadas mamárias daquela Vénus Ubiana para onde a cabeça tinha resvalado sem querer. Cada ronco reverberava na miúda, o que a deixava cheia de espasmos pélvicos e quase a levando ao paroxismo, augurando um fim de semana cheio de emoções fortes. A sua humidade era tão intensa que chegou a temer apanhar uma constipação à custa da brincadeira.

O resto da malta tinha-se apercebido já do novo casalinho e, por muita vontade que tivessem de lhes infernizar a vida, deixaram-nos sossegados a maior parte do tempo. Dos restantes, a Andreia ia servindo de GPS ao motorista - como se ele necessitasse de um GPS - e ao lado, o Zé Remígio estudava o mapa. A Carla e a Micaela punham a cusquice em dia. O Osório e o Alfredo encontravam-se em modo catatónico, mais ao género de curar a bezana da noite anterior. No banco traseiro, o Dominic e a Marina estavam já em modo cruzeiro na marmelada. E o "Pívias" (Chico), no canto oposto, observando-os… agarrado ao pau - activamente - que estas coisas tinham que lhe combater o raio do frio e ganhar músculo; fartava-se de dizer mal da vida por se ter metido numa coisa daquelas sem ninguém para o acompanhar. Tinha de fazer alguma coisa. Neste momento, havia 3 homens contra 2 mulheres e das duas, uma: ou alguém ficava a chuchar no dedo ou ia haver suruba da grossa. E ele não estava para ficar de fora porque farto de fazer jus à alcunha andava ele.

Chegados à Torre, todos estavam já com vontade de esticar as pernas e dirigiram-se rapidamente para o interior do Centro Comercial, fruto dos três graus negativos com que foram brindados à saída da camioneta. Marasmo, apatia e sonolência deram lugar à excitação, tal o tabefe da mudança de temperatura que apanharam. Vanessa tinha uma necessidade premente de ir arejar e afastou-se de todos. Ildefonso mirava-a sem perceber bem o porquê daquele afastamento repentino. Decidiu esperar por ela, ao frio, enquanto os outros entraram para ver o que se podia comprar para as refeições. Se calhar estava aflita para se aliviar. Afinal as gajas mijam por tudo e por nada. O estranho foi ter ido sozinha... e não lá para dentro.

Enquanto esperava, caiu em si. Tinha a ligeira sensação que conquistar aquela miúda ia ser um desafio a ter em conta. Era capaz de valer a pena. Pelas poucas conversas que tinha tido com ela, esta tinha-lhe dado a entender - não só que tinha pelo menos dois dedos de testa mas - que também ela nutria algo por ele. E repousar naquela prateleira tinha sido do caraças!


Vanessa tinha-se afastado do grupo não para ir urinar mas para acalmar a tremura nas pernas e a excitação que tinha sentido naqueles poucos minutos em que ambos tinham passado pelas brasas. Quer dizer... em que ele passou pelas brasas no conforto daquela peitaça porque em brasa já estava ela. A experiência tinha-a deixado com a cabeça à roda. Necessitava recompor-se. Fumou um cigarro e voltou para o pé dos outros. À entrada do Centro Comercial deu de caras com Ildefonso a tiritar de frio, que a indagou:

- Estás b-b-b-b-bem?

- Sim... só precisei de esticar as pernas um pouco. E estava a sentir-me um pouco zonza por causa da viagem...

- Da v-v-viagem? Mas ela só durou meia hora... enjoas com as c-c-curvas?
- Errr... sim, um pouco... deixa... já passou.
- Se p-p-precisares de alguma coisa, diz. Estamos juntos nisto. Estás à v-vontade...
- Sim, eu sei. Obrigado. Já passou. Agora anda lá p'ra dentro senão morres aqui!


Ildefonso anuiu e entraram naquela espécie de Centro Comercial. Contrastando com o frio lá fora, mal entraram levaram com o bafo quente que lhe é característico. Aquele miasma a cortumes mais os queijos e os enchidos era uma mistura que acordava um morto. Deram com o resto do grupo espalhado um pouco por toda a loja. Uns a atacar nos queijinhos da serra, outros de volta dos enchidos mas as miúdas atacavam junto aos casacos, gorros, e rouparia quente. Não querendo gerar mais do que aquilo que já era do conhecimento geral, decidiram separar-se. Ildefonso dirigiu-se para a área dos queijos onde estava o Chico e o "Franciú".


- 'Tão? Alguma coisa para levar? - perguntou.

- Meu... estamos aqui a ver quantos levamos. São duas noites, mas somos onze. Não sei se um queijo chega para todos. - respodeu Dominic.
- Há que ter em conta que a Micas e o "Lupas" não gostam de queijo. Esses ficam de fora. - Retorquiu o Chico. - Portanto é queijo para nove. Acho que um bom queijo dá para todos. Nem que se levem dois ou três minis. Acho que dá...

- Por mim, é na boa - respondeu Ildefonso - mas não convém esquecer que também há quem leve enchidos mais as merdas que trouxemos de casa. Se calhar vamos desperdiçar queijos sem necessidade. Depois temos de levar para casa e lá vamos infestar aquilo tudo...
- Ya - rematou o Dominic... Levamos apenas um queijo e não se fala mais nisso. Também não é para o comer à dentada como se fossem maçãs... Há pão? Este parece ser um pouco amanteigado no miolo...
- Há pão aqui? - Dirigiu-se a um fulano rechonchudo e de bigode tipicamente tuga atrás do balcão.
- Sim... Quantos quer?
- Err... Arranje-me aí uns... - Quantos pães, pessoal? Há que contar com os que a Carla come...


Do outro lado do corredor, a conversa entre o Osório, o "Lupas" e o Alfredo também não era diferente, porém já se encontravam na posse de alguns enchidos pagos e ensacados. Debatiam entre si sobre que quantidade de vinho levar para o acampamento. 


- Vinho??... Ehpá... já tive a minha dose ontem!!... resmungou o Alfredo. Estou com a cabeça a latejar só de pensar nisso.

- Não sejas mariquinhas, pá... Umas duas ou três garrafas não fazem uma garrafeira! - brincou o Osório, já com um par delas colocadas no balcão.
- Estou a falar a sério... isso dá uma bezana do caraças, já para não falar na ressaca... não quero passar os dias todos de papo para o ar e a gregar o tempo todo.
- E cerveja? Pode ser?? - picou o "Lupas", sabendo já o que vinha dali.
- Ai mãe... que mistura... ok... cerveja pode ser. - rendeu-se Alfredo. - Não que faça muita diferença. Mas põe aí duas ou quatro colas de litro para o que der e vier. E umas duas de água.
- Tens água no Covão!!! Tão fresquinha e natural como a sede que vais ter! - gozou ainda mais o Osório.
- Ok... esquece a porra da água! Desde que ninguém vá lá lavar-se, por mim, pode ser.

Compras feitas as atenções viraram-se para o resto do grupo que estava já em debandada para a camioneta. Os outros traziam uma sacada de pão tão grande que dava para um batalhão. O resto das miúdas em conjunto com as outras tinham comprado uns gorros e umas luvas e já estavam igualmente de saída. Vanessa tinha-se deixado para trás e esperando que Ildefonso notasse o seu impasse e acercando-se dele, entregou-lhe um embrulho com um laçarote.

- Toma. É para ti. Mas promete que o abres só na tenda.
- Obrigado, não precisavas... Ok, prometido.
 

E agradeceu-lhe dando-lhe um beijo na testa. Vanessa corou de satisfação.

Ildefonso ficou como que embasbacado a olhar para aquele embrulho.
"Caralhosmafôdam!... e eu esqueci-me de lhe trazer alguma coisa... és mesmo grunho, dasse!"

Naquela dezena de quilómetros entre a Torre e o Covão da Ametade, Ildefonso quase não abriu a boca. Aquela oferta tinha-o apanhado desprevenido. Não pelo gesto ou atenção mas porque se tinha esquecido de se lembrar dela. Nem que fosse com um frasco de compota. Vendo-o atrapalhado, Vanessa deu-lhe um beijo na cara sussurrando:

- Não fiques assim. A tua presença aqui comigo fez-me ganhar o dia. Estou muito feliz por estar contigo e por podermos passar estas noites juntos. Porque eu não tenho vontade de ir para outra tenda com mais alguém.

Mais uma vez, Ildefonso estacou. Logo ele que era moço de palavra fácil e resposta pronta. Tinha andado estes últimos dias a pensar no que fazer para conseguir uns parcos momentos de recolhimento com Vanessa, no abrigo de uma tenda ou noutro buraco qualquer e esta sai-se logo com esta de "passar estas noites juntos".


Ainda mais parvo do que já estava e escondendo o melhor que podia os pulos de alegria do Barnabé, saiu-se com qualquer coisa como:


- "Amicitiae nostrae memoriam spero sempiternam fore (*)".
- Ai, gajo... deixas-me completamente louca quando dizes essas frases tão lindas que ninguém entende!!

 

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(*) "Espero que a memória da nossa amizade seja eterna", Cícero.

3 comentários:

Gondri disse...

Vê-se que é bom quando se chega ao fim e apetece mais. É o caso. Tudo junto vai dar um romance, e dos bons. E confesso que aprendo umas coisas de vocabulário, isto para já não falar de uns troços de latim.

libelinha disse...

Está a ficar interessante :) se não é, bem parece uma história real!

Nuno Miguel da Cruz Ramos disse...

Isto está radiante, venham de lá os próximos capítulos.