Nos longínquos eighties a residência universitária de Santo António vivia ensombrada por uma dúvida existencial que eu carregava, cujo enunciado era: numa luta entre um touro e um leão quem é que ganhava? A maneira inequívoca de resolver o enigma era ir buscar um touro ao Ribatejo e um leão a África, e metê-los aí numa praça de touros à bulha, a ver qual deles amarfanhava o outro. O touro o Pedroso tratava, o Pedroso, esse ribatejano de gema que tem a festa brava a correr-lhe nas veias e que é tão fanático que diz à boca cheia que a luta entre o touro e o toureiro é uma luta de igual para igual. O pior era o leão, quem é que trazia um leão de África? Havia-os em Alvalade, é certo, mas eram todos tão enfezaditos e deprimidos que valia mais o touro ganhar 3-0 por falta de comparência do que estar a bater em mortos. À falta de leão começou a levantar-se outra dúvida existencialista, essa muito mais fácil debelar na prática: quem é que ganhava, o touro ou o carneiro. Carneiro dos bravos, entenda-se. Eu, claro, defendia a supremacia do touro, mas as vozes discordantes asfixiaram-me com o contraditório, “o carneiro bate em pancada seca, que é muito mais perigosa, ao passo que o touro é mais em vólei…”, e eu ainda agora não sei se aquilo era bulling cognitivo, para me confundir o cérebro e me induzir nos neurónios a ideia do carneiro vitorioso, ou se eles achavam mesmo que um carneiro dos bravos era capaz de fazer a cama a um touro. Mantive-me sempre renitente, “coitado do carneiro, esse petiz cornudo que mal tem corpo para levar um coice de um burro quanto mais a investida de um touro de quinhentos quilos de fúria?!”, e nunca me dispus à prova real de meter um touro e um carneiro numa arena. Por acaso ninguém se lembrou de colocar a dúvida na luta entre o leão e o carneiro, até porque uma dúvida dessas dava direito a uma reserva de quarto numa clínica qualquer para atrasados mentais. O carneiro bem que podia ter a pancada seca que o leão dizia-lhe a secura…, aliás, acho que o leão até confundia o reino animal com o reino vegetal, e chamava-lhe um figo…
Nessa altura ainda não tinha chegado a vaga vegan animalista que colocou os animais ao nível dos homens, nessa altura o leão, o touro e o carneiro ainda eram bichos. Agora, mesmo que alguém trouxesse um leão de África e o Pedroso um touro do Ribatejo, e a UBI alugasse a praça de touros da Idanha para uma tourada leonina, não faltariam animalistas para cancelar tudo. Isto está de uma maneira que um tipo nem pode dizer que vai à tasca matar o bicho, está logo feito ao bife (de soja, entenda-se). Eu sou de outro tempo, do tempo em que os animais eram irracionais. Confesso que não consigo matar um animal, não sou insensível, e até nem digo que deste vegetarianismo não beberei. Mas não caio na modernice idiota de colocar o homem ao nível do animal, isso castra milénios de humanismo, afronta a grandeza de uma civilização e de uma inteligência que foi capaz das coisas mais inimagináveis. O animalista, porém, despromove-se por iniciativa própria à condição de cão e gato, são todos da mesma família, não há de tardar muito que se batize o cão, e só não vai para a escola porque não vale a pena insistir. Até admito que o animalista tenha nojo dos animais mais repugnantes, como a lesma, por exemplo, mas olha-os sempre com o seu olhar compassivo. Por exemplo, quando vê uma mosca a afogar-se no prato da sopa, o animalista sente um misto de nojo e compaixão. Nojo porque a mosca não se faz rogada se tiver que pousar no esterco (para não dizer merda), e compaixão porque a linda mosquinha merece todo o nosso amor e carinho.
Os tempos são outros. Naquele tempo a minha dúvida existencialista girava à volta de dois animais bravios, um felino e um bovino. Agora ninguém tem essa dúvida porque não há maneira de a tirar, não se pode ofender a causa animal. Há no entanto uma alternativa tecnológica: um jogo de computador onde um touro e um leão se degladiam na arena. Aí já pode haver sangue e morte, os animais não sentem. E tanto pode ganhar um como o outro, depende da perícia do jogador…
Gondri
2 comentários:
Na mouche, parabéns.
Obrigado, Nuno.
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