terça-feira, 30 de junho de 2020

A influência da leitura subversiva na vida universitária da UBI dos anos 80

Esta crónica é uma crónica séria e tal como no passado, aborda uma temática
ainda hoje preocupante. Pretende retratar a influência das diversas fontes de
leitura subversiva na vida académica da UBI em meados dos anos 80.  É por isso
um tema polémico e controverso ou como dizem hoje, quarenta anos depois, um tema
“fracturante”, que para ser percebido na sua plenitude, deve ser enquadrado á
época.  Convém não esquecer que nessa época, volvidos apenas poucos anos após o
Abril de 74, ainda era algo que preocupava muita gente nos meios literários e na
sociedade em geral, e quando transportado para o meio universitário era ainda
menos gerador de consensos relativamente ao seu impacto e especialmente, quanto
ao tipo, natureza e conteúdo que se encontrava nessas publicações.  Sabia-se no
entanto que a censura estaria já “lá para trás”no tempo, algo perdida no antigo
regime e que sem censura, essas publicações proliferavam e se tornavam mais
diversas e transmissoras de mensagens de divisão e identificação de grupos da
sociedade capazes de actos subversivos. Era assim um pouco por todo o lado, mas
em particular na UBI. No entanto aqui era difícil identificar as correntes de
pensamento e ideologias mais vincadas nessa época de liberdades e de acesso ao
conhecimento universitário.  As razões para esse facto estavam relacionadas com
o isolamento da Beira Interior e por ser uma universidade ainda pouco conhecida
no panorama académico. Eram os tempos do ainda Instituto Universitário da Beira
Interior, onde pelo número reduzido de estudantes de então, e no longínquo ano
de 1985, a população universitária, já sendo originária de vários pontos do
país, constituíamos uma família com hábitos recatados e onde se comia na
residência académica quase melhor do que em qualquer restaurante da Covilhã
desse tempo, que também não eram muitos. Esses pequenos restaurantes muitos
deles alimentados pela frequência de estudantes universitários, rapidamente se
converteram em pequenas tertúlias de grupos de colegas, onde entre uma boa
sandes de panado, ou uma bifana e uma mini,ao balcão ou sentado,se difundiam
mensagens de completa subversão e boicote, frequentemente associadas á leitura e
partilha dessa literatura subversiva.  Nessa altura, e quando se esperava
identificar correntes ideológicas que estavam então na moda,na frequência da
Universidade ou nos bares e festas ou em locais de referência da Covilhã, cidade
também agitada socialmente com a revolução e no período após,para surpresa de
todos quantos frequentávamos a UBI, tal não era possível!Ninguém conseguia
identificar os Socialistas, os Comunistas, os Sociais Democratas, os de Centro
Direita, os de Extrema Esquerda, os Marxistas Leninistas, os do Partido A, B ou
C! Nada!!!Nem uma boa dúvida razoável acerca das preferências ideológicas ou
partidárias, ou qual a cor da militância de cada um! Dos professores nem falar
pois não era tema de conversa nem nas aulas, nem fora delas, nem nas revisões de
testes, quando “a coisa” azedava, nem do pessoal discente nada transpirava que
pudesse indiciar as suas preferências ou orientações! Parecia um absoluto vazio
ideológico!! Enfim, um paraíso do melhor pluralismo democrático!! Parecíamos
esquecidos nessa interioridade até nessa busca incessante de identificação
ideológica!  Nunca se ouviu chamar fascista ou capitalista ou qualquer outro
nome a ninguém que indiciasse a sua facção ou preferência política. Bom se
exceptuarmos um dia enquanto cruzava a parada e alguém gritou para um colega: ´Ó
cenourinha, olha que a biblioteca está fechada!!”, eu me viro e estava uma
colega de cabelo ruivo a caminhar na direcção da porta de acesso á
biblioteca. Por momentos pensei tratar-se de uma social democrata, mas ao
reparar na cor do cabelo apercebi-me que apenas premiava o seu gosto pela cor
ruiva de tão interessante colega universitária! Mais tarde tive um colega a
quem, antes da primeira aula chamavam de “O vermelho”, “Conheces o fulano, sabes
quem é?”, perguntavam-me! “Não”, respondia eu! ”É o ´não sei quantos´
“vermelho”!!. , diziam-me!!Julgava eu, bom quem tem uma alcunha assim deve ser
no mínimo um pequeno comunistazinho…! Qual quê!! Desenganei-me logo no primeiro
laboratório, quando mais uma vez constatei desafortunadamente que era mais um
colega com o cabelo ruivo, ainda que a alcunha de “Vermelho” lhe ficasse melhor
do que se chamasse “Cenourinha”, pelas razões óbvias de ser uma alcunha mais
macho, ou um ‘alcunho’, nesse caso!

Bom era este o panorama que se afigurava de total indefinição ideológica,
politicamente falando.E não que isso me preocupasse pois nunca liguei muito á
política, mas incomodava-me o facto de poder estar a conversar com alguém sobre
batatas e o meu interlocutor só gostar de arroz e feijões e cebolas! O que
naturalmente tornaria as conversas que pudéssemos vir a ter, na nossa
convivência académica de pelo menos cinco anos ou mais, bastante inócuas.
Afinal estávamos num ambiente universitário e esperava-se que as conversas se
tornassem mais intelectuais pois parece que íamos ser todos Doutores e
Engenheiros!  Se em boa verdade nada transpirava que ajudasse a conhecer as
orientações ideológicas de todos os “players” ubianos, já no que toca á
proveniência, era fácil de identificar uns quantos, por sinais emitidos durante
essas conversas, nos bares ou na entrada prás aulas e na fila para a
cantina. Por exemplo,sabia-se quem era do Norte ou especialmente da cidade do
Porto, por dizerem numa frase de cinco ou seis palavras duas palavras de grande
significância e muito populares nessa zona do país,do tipo: “Está um frio fdp,
car…o!” . Assim em apenas cinco palavras pronunciadas no seu musical
dialecto,sabia-se de onde vinha e um pouco da sua terra e da personalidade dessa
pessoa,bem como os seus gostos gastronómicos requintados bem vincados no amor
incondicional ás “tripas” e á “francesinha”. Eram um livro aberto que no entanto
não permitia levantar a ponta do véu em matéria de preferências ideológicas!
Neste enquadramento,era assim que se vivia na UBI de então, onde todos éramos
felizes e perfeitamente compatíveis em matéria de pensamento. Dividiam-se aulas
entre alunos e passavam-se as aulas ausentes,pelos colegas que a elas assistiam,
fotocopiavam-se sebentas e apontamentos dos mais aplicados, e sabia-se
exactamente quem eram. Eram precisamente os que não iam ás discotecas da zona,
de Segunda a Sexta, Sábado e Domingo, até ás tantas. Estes também se sabiam quem
eram e até o que consumiam no bar em quantidade e qualidade! Neste aspecto
também eram um bar aberto,… perdão um livro aberto! Que influenciavam outros
mais aplicados, de vez em quando a experimentarem os prazeres mundanos da vida
boémia! Já se vislumbravam aqui algumas correntes ideológicas e comportamentais
que revelavam algum inconformismo e aplicavam na sua plenitude os conceitos de
liberdade e fraternidade adquiridos com a revolução de Abril! Eram os primeiros
indícios de verdadeira subversão que de uma forma encapotada criavam condições
para a introdução de ideias menos concordantes com o ideal e conhecimento
universitário. Daí ao aparecimento das outras tendências manifestadas em
simultâneo, introduzidas pelo aparecimento da literatura subversiva.
Continuavam-se por isso a ver as subdivisões na academia: depois de
identificados os naturais do Porto, surgiam agora os certinhos, os tais que iam
ás aulas para os colegas, e os boémios subdivididos entre o grupo dos que
comemoravam as vitórias nos testes e as passagens ás disciplinas e o grupo dos
que comemoravam todos os dias sem que fosse necessário motivo. Estes também
comemoravam quando chumbavam ás disciplinas, sob a égide do princípio ideológico
e politicamente correcto do “beber para esquecer”. Aquela igualdade que todos
sentíamos quando pisámos a UBI pela primeira vez, como caloiros, dava assim
lugar á cisão em vários grupos, onde continuava a haver dificuldade em
distinguir qual a cor política de cada um! Também isso não era assim tão
importante, desde que Marxistas Leninistas, Sociais Democratas, Socialistas,
Centristas, etc, fossem todos ás mesmas festas da semana do caloiro e bebessem
todos Superbock do mesmo barril!  Com o decurso das primeiras aulas do primeiro
semestre,além das cisões já identificadas até então, assistiu-se crescimento
exponencial das divisões na academia com o surgimento de obras e publicações
subliminares e a sua difusão tentacular entre os alunos, professores e pessoal
não docente da UBI, fontes de actividades subversivas e geradoras de
instabilidade.  A periodicidade regular destas publicações e o então baixo preço
de aquisição, tornavam ameaçadora a sua rápida absorção e difusão dos conteúdos
atingindo todos os estratos sociais da população estudantil, docente e auxiliar
da UBI. A opressão anterior “pidesca” e de lápis azul,ainda bem vincada nos anos
posteriores á conquista de Abril, assumia contornos de revolta e de completa
subversão. Ao ponto de muita dessa literatura finalmente ajudar a perceber o que
até aí não tinha sido possível: - como a academia da UBI se dividia em termos
ideológicos!!  Se até aqui não tinha sido possível identificar nada mais que os
ideólogos do copo e da festa serrana e os marrões certinhos, agora passava a ser
possível uma identificação mais realista das várias correntes de pensamento e
das tendências de cada um!!

Vejamos então cada um dos sinais que permitiram essa identificação através dessa
literatura subversiva.Conhecidos através da metodologia de aplicação de um dos
princípios mais antigos de uma sociedade civilizada: - “Diz-me o que lês,
dir-te-ei quem és!”  E o que começou a aparecer na UBI desse tempo capaz de
gerar esses indícios e de a levar á subversão? A UBI vivia momentos tranquilos
até ao aparecimento de um quiosque bem em frente da entrada principal. Ponto de
passagem obrigatório de todos, mesmo dos que faziam a sua pausa no café do
Artur. Era o principal antro onde se distribuíam a literatura subversiva. O
Autosport era um dos principais manifestos. Semanal, saía então á terça-feira e
era então muito acessível! Havia guerras para conseguir um exemplar,pois era de
tiragem limitada. Especialmente em Março,época de Rali de Portugal.Sabia-se quem
eram os malucos dos automóveis pois até o reservavam semana após semana e o
coleccionavam. Entretanto mal o compravam liam-no avidamente, esquecendo-se
alguns até de ir ás aulas nesses dias de início da semana. Era assim um
documento extremamente subversivo, pois antes do Rali de Portugal ajudava a
planear a ida ao rali desses estudantes influenciáveis pelo gosto aos
automóveis, ao ponto de abdicarem das aulas durante uma semana para se meterem
em meia dúzia de carros e planearem longas viagens para ir ver o rali passar e
as longas vaquinhas logísticas para que tal fosse possível. A quem não era
bafejado com um exemplar, era-lhe lido o seu conteúdo ou emprestado “á sucapa”,
e levado para as aulas onde era lido nos fundos das salas mais concorridas. Não
podia haver nada mais subversivo e impactante nos desígnios universitários dos
Ubianos, pois além de distrair da aquisição das matérias leccionadas ao ser lido
no fundo da sala, também incentivava a faltar ás aulas nesse semestre e sempre
que o rali fosse perto! Ou a Rampa da Covilhã se disputasse! A sua natureza mais
subversiva é vincada ainda pelo facto de nunca se ter constado que nenhum aluno
tivesse aprendido mecânica por ávido consumo dessa literatura! Nem mesmo os de
Engenharia Mecânica! Mas era uma publicação de fácil leitura e quando
avistada,por descuido, ficava bem debaixo do braço de cada um ou mais
dissimulada na pasta do portátil ou no meio das sebentas de fotocópias da
Fiação, encadernadas na Associação. Era um documento tão subversivo que
corrompeu inclusivamente alguns professores do Departamento Têxtil que incautos
se deixaram influenciar para o seu consumo regular. E de outros departamentos
também! E o seu impacto ia mais longe pois terá sido várias vezes difundido o
conteúdo da sua mensagem ou partes dela, á população da cidade através de
programas sobre automóveis divulgados na rádio local, quando estas apareceram. O
único revés sofrido nesta onda de influência, aconteceu precisamente num desses
programas que ia para o ar á terça-feira á noite, quando um dia por falhas de
impressão a publicação não foi distribuída a tempo da passagem da mensagem, que
no entanto ocorreu da mesma maneira, mas com recurso ao improviso na melhor
aplicação da velha máxima “ a necessidade aguça o engenho”!! O Autosport esse só
apareceu nos quiosques e tabacarias no dia seguinte! Também não raras vezes esta
publicação levou a conflitos estudantis que lutavam por conseguir um exemplar
depois de correrem todos os pontos de venda da cidade. Não havia pois nada mais
subversivo que agora permitia a identificar mais um grupo restrito de pensamento
com uma tendência bem vincada, dentro da população Ubiana.Tão ferozmente
subversivo que no dia da primeira frequência de Análise Matemática I,um Sábado,
por causa da leitura do exemplar da semana anterior, enquanto o resto da turma
fazia o teste e tentava a sua sorte, eu e um outro colega estávamos á mesma hora
no Alto da Serra do Bussaco, num gancho a ver passar o Rali da Figueira da
Foz!Como passaram apenas dois alunos em cerca de centen e meia de colegas
examinados, acabei a concluir que foi uma falta bem empregue e sem danos maiores
rumo á conclusão do curso!Portanto uma subversão positiva!

Outro dois exemplares dessa literatura de “Intervenção” bastante marcantes das
tendências e ideologias vigentes na população estudantil eram a “Bola” e a
revista “Maria”. Nunca percebi o porquê de se considerar a “Maria” uma
publicação de literatura “cor-de-rosa”. Na altura quando ouvi esta referência
pela primeira vez, cheguei a pensar tratar-se de um manifesto Socialista, do
“partido da rosa”, portanto uma publicação com uma conotação ideológica política
evidente! Que no entanto não se confirmou,depois de ter folheado três exemplares
e não ver nada dessa cor! Havia muitas cores nas páginas, mas rosa não era uma
delas!Lendo um par de artigos na diagonal, também não me parecera que contivesse
referências ideológicas atribuídas ao socialismo, nem a qualquer outra de
natureza política! No entanto percebi mais tarde que influenciou o
desenvolvimento pessoal e o conhecimento de anatomia de muita gente estudante e
desenvolveu o seu pensamento científico,bastante útil para absorver as matérias
mais exigentes dadas em sala de aula nos mais diversos cursos.Também subverteu
alguns ubianos e ubianas que as liam no fundo da sala e ajudou assim á
identificação de mais um grupo ideológico: - os adoradores dos assuntos do
coração, que não queriam saber nada de carros. Diga-se em abono da verdade que
esta constatação chocou-me um pouco por verificar que nenhum dos elementos deste
grupo pertencia em simultâneo ao outro grupo!  Ainda que no seu apogeu
subversivo esta revista tenha sido utilizada para me forçar á conversão através
da leitura ininterrupta da Maria e outros manifestos similares, nas viagens que
fazia desde Viseu com um certo presidente da associação académica a recitar
continuamente e até á exaustão, a mensagem subversiva nela contida. Tal sucedeu
semanas a fio,o que me levou a pensar que seria ele um dos líderes dessa
facção. No entanto, a alternância com outro manifesto também ele alvo de intensa
leitura nessas viagens,o “Jornal do Incrível”, constatei que era apenas um
elemento afecto a essa ideologia, que adorava o “cor de rosa”, com a mesma
intensidade que adorava o “extraordinário”!Nunca mais me preocupei desde então
com a contínua pressão psicológica nessas viagens, e passou a ser mais uma coisa
do tipo “fazer a festa deitar os foguetes e apanhar as canas”, que todavia
comecei a notar que tornava as viagens mais curtas entre Viseu e a Covilhã!
Esta revista tinha no entanto a virtude inovadora de fornecer os primeiros
conhecimentos de Ginecologia,Psiquiatria, Psicologia e Sexologia ainda antes do
aparecimento dos cursos de Medicina da UBI, e a clarificar as dúvidas estudantis
acerca de vida sexual saudável, aos seus leitores através da análise detalhada a
respostas a questões como: “Dei um beijo ao meu namorado no passado
fim-de-semana! Estarei grávida?”, cujas conclusões ajudaram ainda ao
desenvolvimento de um pensamento crítico científico que,nalguns casos de alguns
alunos e conforme testemunhos recolhidos após o final dos respectivos cursos,
terá ajudado á sua conclusão e á sua consolidação como profissionais nas suas
áreas científicas de intervenção e ao seu desenvolvimento individual nestas
matérias!Portanto embora subversiva e muito importante para alguns, nem boa nem
má para outros,era uma lieteratura que não reunia consensos e dessa forma
contribuía ainda mais para a cisão da academia!  Para outros alunos,com quem
recolhemos depoimentos, confessaram-nos que o carácter subversivo da publicação
era acentuado por fomentar a desconcentração dos temas universitários e matérias
abordadas nas aulas, através de conteúdos profundos e extremamente apelativos á
criatividade! Também registámos casos de um ou outro aluno que faltou ás aulas
da manhã por ter estado a recitar partes da mensagem dessa publicação aos
colegas de quarto da residência enquanto apanhavam uma piela, que impossibilitou
que qualquer deles fosse ás aulas da manhã! No dia seguinte! Apesar da ressaca
ter sido suave por terem bebido apenas bebidas brancas a acompanhar os
amendoins!

Da mesma forma passou-se também a conseguir identificar os Lampiões por serem
aqueles que dentro da ideologia e do amor ao futebol e aos desportos com bola,
passeavam orgulhosamente o manifesto reaccionário de maior formato da época: a
Bola.Que na altura já não era muito acessível mas ainda assim amplamente
difundida! Que sofria a concorrência de outras publicações alternativas de
intervenção: o “Record”, e poucos anos mais tarde, o “Jogo”, o primeiro mais
identificado com os Anti-benfiquistas (como os do FCPorto) e o segundo com os
Sportinguistas. Ainda que todos os subvertidos pela Bola, tinham muitas vezes
que beber informação no Record por falhas constantes na distribuição ou faltas
para agradar a tanto futuro “bom chefe de família” – os benfiquistas!! A Bola
era seguramente um parente pobre da literatura da subversão, até porque se bem
que conseguia os mesmos resultados nefastos concorrendo para a baixa frequência
das aulas, sempre que havia jogos do Europeu ou Mundial, como tinha um formato
grande era mais difícil de esconder entre as sebentas para ser lido nas aulas na
3.1 ou no fundo de um anfiteatro qualquer. Diz quem a lia, que para não dar
muito nas vistas,só se liam as “gordas” e que o resto do conteúdo não era
importante, o que reforça o carácter de parente pobre da literatura de
intervenção desse tempo! Era no entanto uma publicação extremamente perigosa
pois chegou a gerar conflitos que degeneraram em chapadaria entre adeptos de
dois clubes retratados nessa edição!Só não foi necessário chamar a polícia de
intervenção porque os contendores acabaram em berreiro a alta voz a selar uma
aposta com um aperto de mãos a meio da descida para a residência, que pôs fim ao
conflito até ao fim-de-semana seguinte!  Percebeu-se que era uma publicação que
facilmente incendiava os ânimos, sem que na altura existissem programas de
televisão para esse efeito. Parente pobre da subversão, mas ainda assim bastante
perigoso! Era no entanto a literatura subversiva de eleição por ser a mais
representativa,pelo número de exemplares debaixo do braço visíveis,
especialmente quando a contagem era feita á entrada do bar ou sobre o passadiço
de acesso.  Sabia-se assim quem era do Benfica ou das outras congregações
futebolísticas,grupos de natureza aguerrida mas sem grau de organização elevado,
na UBI naturalmente!Já se conseguia assim chatear o parceiro ou o colega de
quarto com a mão bem aberta levantada, sempre que depois do fim-de-semana o
clube do outro levava cinco! Era outra forma de cortesia, mas provocadora de
conflitos que afectavam o quotidiano Ubiano!  A maior virtude desta peça de
literatura terá sido facilitar a integração de estudantes estrangeiros na UBI,
pois é sabido que nesse tempo alguns conseguiram entendera totalidade do seu
conteúdo ainda antes mesmo de aprenderem o português necessário á compreensão
das sebentas e dos conteúdos do curso. O devorar dessa informação fez pois
milagres pela aculturação de alguns deles, que sabiam tudo o que lá vinha
descrito até á última virgula até mesmo quem marcava os golos e descrever a
justiça da marcação dos “off-side”, mas não tinham a mais pálida ideia das
matérias contida nas sebentas das disciplinas!

Apareceu na altura um outro documento de ideologia vincado num pequeno nicho da
população estudantil, que se achava mais aculturada por ler o Blitz e ficar a
par de todos os concertos,críticas e lançamentos discográficos! Era um grupo no
entanto mais discreto e que não gostava muito de o emprestar e o tornar uma
leitura de massas!Tecnicamente, quem não lia o Blitz era um ignorante, até
porque antes de aparecer e ser vendido no quiosque em frente á UBI ou noutro
ponto de venda qualquer na Covilhã, chegava á UBI um restrito número de
exemplares, trazidos do Porto pelos alunos utentes da Rede de
Expressos.Assim,por viajar mais dissimulado era mais restrita a sua leitura e o
seu efeito subversivo mais controlado e restrito aos seus proprietários e a um
ou outro seu colega de quarto. Raramente havia discussões e chapadaria á volta
do Blitz, como havia á volta da Bola e do Record! Conclui-se por isso que foi
uma corrente ideológica passageira na vida académica da UBI, e de todas a menos
notada pela sua efémera passagem. Não fosse o facto de aquela malta usar umas
t-shirts “bacanas” que eram distribuídas com a publicação e que continuaram a
ver-se no ambiente universitário desse tempo. Até porque o seu preço disparou e
deixou de estar ao alcance de qualquer pequeno anarquista remediado que gostasse
de outra música que não a que passava na Rádio Covilhã ou no Oceano Pacífico da
Renascença! Estações devoradas á noite enquanto se estudava para os exames ou se
faziam os desenhos em perspectiva cavaleira, exigidos para fazer as disciplinas
de Desenho Técnico.  O pior deste grupo era acharem-se superiores por usarem
calças apertadas ao fundo. E mais inteligentes, o que, ao contrário do que esses
pensavam e para bem da harmonia do quotidiano universitário ubiano, os
professores e as disciplinas mais exigentes se encarregavam de nivelar! Não se
consta por isso que esta corrente subversiva gerasse acréscimos de QI! Ou bom
gosto a vestir!

Existiam algumas outras publicações também elas subversivas mas de distribuição
mais limitada e que identificavam nichos tendencialmente activos entre a
população universitária, São alguns exemplos as revistas de lavores e tricot,
que algumas alunas e alunos também compravam. De acesso restrito, marcavam as
elites mais habilidosas de mãos da Universidade, Até pelo seu preço elevado fora
do alcance de qualquer um até dos que compravam a Bola e equacionavam opções
sempre que esta falhava! Até porque já havia quem fizesse na família uso dessa
literatura e a utilizasse para fazer os enxovais dos casamentos vindouros, logo
após terminassem os seus cursos, onde pontificavam as grandes toalhas e naperons
bordados em ponto de cruz!Destas a “Fada do Lar” era das mais procuradas, o que
mostrava já uma tendência que poderia vir a descambar no futuro e obrigar a uma
revisão do enxoval! Era a corrente dos Indefinidos, que felizmente no caso de
alguns também liam o Blitz e sabiam onde era o próximo concerto! Não para fumar
umas coisas “que fazem rir” mas tão somente porque gostavam de música boa nos
ouvidos e não daquela que o “Open-end” ou os teares de pinças davam nas aulas
práticas!Ou as piadas secas extremamente rebuscadas e espremidas nas aulas de
Termodinâmica e outras disciplinas difíceis com elevado índice de reprovações,
com que alguns professores nos brindavam como forma de enaltecer a burrice
intrínseca de alguns companheiros de luta universitária!

Também afastavam gente das aulas pelas horas que demoravam a fazer qualquer
paninho que lembrasse as nossas avós! E que lhes afastasse a vista do quadro
onde a matéria era explicada, consumando a maior subversão de todas: -o
desinteresse pela disciplina e pela frequência das aulas.

Com a contribuição desta literatura altamente subversiva e desconcertante foi
assim possível identificar as ideologias e maiores correntes de influência
visíveis na UBI em meados dos 80. Alguns indivíduos ficaram tão marcados que
após a passagem na Universidade e face ao desaparecimento de muitas destas
publicações, procuraram encontrar eco para a passagem das mesmas mensagens nas
redes sociais, onde apesar da influência e divulgação ser maior, não permite o
coleccionismo dos exemplares dessas marcantes publicações! E convenhamos que o
formato em papel é que era bom, pois entre outras vantagens era usado como papel
higiénico nos quartos da residência, depois de devorada intensamente a mensagem
neles contida, como era o caso da “Bola” por ser um formato maior em papel mais
macio. O que acabava a torná-lo um manifesto mais económico e deixava antever já
princípios revolucionários de reciclagem e utilização sustentável, descobertos e
promovidos anos mais tarde com as políticas ambientais de sucessivos
governos. Ficava assim provado que no seu apogeu subversivo, essa publicação
também contribuiu para o desenvolvimento de uma consciência ambiental notável em
todos quantos a leram e lhe davam essa utilização!  Nunca mais a vida
universitária da UBI foi a mesma e ainda hoje muitos questionam como é que com
tanta influência ideologicamente subversiva ainda houve quem conseguisse
concluir o curso!


João Leonardo

3 comentários:

Vasco Silva disse...

Parabens João, um excelente texto que se lê avidamente, temo porém, que a não inclusão de uma alusão á publicação "made in UBI" "altamente subversiva" e excelentemente editada pelo "Dr. Fava" se revele uma lacuna grave ...

João Leonardo disse...

Não foi incluída porque além de um par de excertos que li e apenas um par de contactos que tive com o Fava,que se foi embora no final do primeiro semestre nunca tive grande referência das Crónicas do Reino!Era um grande relato de ficção ubiana que foi anterior á minha entrada para a UBI e foi mais do teu tempo,por ter sido difundida anteriormente durante a primeira metade dessa década!Por isso não referi esse extraordinário relato da academia!

Nuno Miguel da Cruz Ramos disse...

Bela ilustração da época, e sim, juntando as Crónicas do Reino, sátira IUBIana do grande Fava dos Santos, o Boletim Informativo que o Henriques Oliveira fundou e liderou, teríamos replicado na perfeição. Mas está muito bom.
Parabéns João.