sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO XI - A RESSACA

 


Aos poucos, a neblina matinal ia-se dissipando, como que abrindo o Covão da Ametade para o mundo. O correr daquele "regato" mais alguma passarada em alvoroço, eram, para já, as únicas coisas que se ouviam. A espaços, um ou outro campista ia deixando no ar um cheirinho a café acabado de fazer, acordando tudo à sua volta. Ainda debaixo deste ambiente, aos poucos, a malta ia acordando. A Andreia e a Marina tinham ido aos balneários tratar das primeiras higienes enquanto que cá fora, só o Dominic e o Zé Remígio se encontravam de volta da fogueira, que durante a noite se tinha extinguido. Havia que dar vida àquilo sob pena de ninguém sair das tendas. Por mais que o luso-belga tentasse, não conseguia arrancar uma palavra ao amigo, mais do que as estritamente necessárias para não parecer mal educado. Todas as ocorrências da noite anterior tinham-no deixado desgastado e sem vontade de grandes convívios. Para o Dominic também não foi melhor, uma vez que o que tinha planeado ser uma noite no "bem bom" com a Marina, mais não passou de uma "noite a tentar dormir" quase sem sentirem a companhia um do outro. 

Do "Lupas" nem pio. Tinha-lhe sido difícil pregar olho depois da "revelação" que tinha sido feita e nem mesmo toda a insistência da Andreia em salvar o que quer que fosse, foi correspondida. Estava lixado com ela, estava lixado consigo próprio por se ter iludido daquela forma e estava lixado com tudo e todos porque, sabendo que a Andreia tinha um namorado, ninguém tinha sido frontal o suficiente para lhe dizer o que se estava a passar, prolongando, por mais tempo do que o aceitável, uma mentira que só a ele diria respeito e que o fragilizou e durava há quase dois anos. 

Para o resto da malta, a noite tinha corrido muito bem a julgar pelo lote de novos casalinhos que tinha gerado. Parecia que nasciam como cogumelos. Tanto a Carla como o Osório já se encontravam cá fora, envoltos num cobertor e muito agarradinhos um ao outro. Dos restantes só se sabia que estavam vivos porque se ouviam as suas vozes. A Micas e o Alfredo, bastante animados, pareciam estar em vias de dar continuidade a uma noite onde se fez de tudo menos dormir. Na tenda do Ildefonso, tanto ele como a Vanessa, picavam-se mutuamente para se saber quem seria o corajoso que iria abrir o fecho da tenda. A Vanessa espreitou lá p'ra fora e vendo um ambiente pouco amistoso, recolheu para dentro novamente, desistindo para já de socializar. Pouco depois estavam já os dois a matar saudades um do outro, completamente alheados do facto de haverem pelo menos uns dezasseis ou dezoito ouvidos ali à poucos passos. Do Chico nem sinal.

Uns minutos depois, já com as outras duas de volta e à medida que o som exterior ia aumentando, os mais renitentes decidiram sair das tocas. 

Tanto a Vanessa como o Ildefonso, que tinham estavam a leste de tudo o que se tinha passado fora da tenda na noite anterior, mostravam-se - além de bastante desgrenhados e com "olheiras de metro" - bastante alegres e ao mesmo tempo surpreendidos com a junção de mais dois casais que pareciam ter sido formados à pressão. Demonstraram contudo uma grande satisfação por eles, tendo distribuído "hi-fives" a cada um como forma de lhes dar as "boas vindas ao clube". Estranharam a disposição dos restantes, onde o silêncio parecia imperar, criando um ambiente bem agreste, que contrastava bastante com o resto.

De mijinhas dadas, tripas aliviadas e banhinhos tomados, foram-se juntando à base, algum tempo depois, para o pequeno almoço. Não era que estivesse muito frio até porque por dentro estavam mais que aquecidos mas convinha não ignorar a baixa temperatura que se fazia ali fora. O céu, embora limpo, indicava a vinda de um dia ainda mais frio que o anterior. Havia que alimentar muito bem aquela fogueira ao longo do dia ou, desenvolverem algum tipo de actividade física que compensasse a falta de calor. Caso não resultasse, havia sempre o recurso ao álcool. Naquele momento, havia ali adeptos para qualquer uma destas opções. 

O começo da manhã, gerou um cenário estranho e partido ao mesmo tempo. Enquanto que os "casais novos" iam descrevendo animadamente - não o que fizeram – mas “como foram apresentados” ao Ildefonso e à Vanessa, do outro lado, havia quatro pessoas que, mesmo mostrando algum contentamento com este novo "fenómeno", mantinham-se caladas na maior parte do tempo. Esta situação foi aquela com que se deparou o Chico que entretanto vinha felicíssimo da vida de regresso "a casa". 

- Bom dia. - cumprimentou alegremente.
- B' dia. - recebeu em resposta, quase por favor.
- Então? Que contam? Passaram bem a noite?
- Já lavaste a cara? - inquiriu o Dominic, ríspidamente - Se sim, olha bem para todos e tens a resposta dada. 
- Calma... ehpá... estou a perguntar na boa... Já vi que há aqui novidades. Micas, gostava de falar contigo sobre nós.

Isto deixou todos, mais uma vez de boca aberta... "Era preciso ter lata!". A Micaela estava agarrada pelo Alfredo. Este mostrou-lhe um ar de quem a qualquer momento era capaz de o pôr a "cuspir amêndoas", coisa que ele não entendeu. Da Micas, apenas obteve uma resposta:

- Espero que tenhas passado bem a noite mas não estou interessada em conversar contigo. Eu passei-a muito bem e arranjei alguém que gosta de mim a sério.
- Err... quê? Então e... eu?
- Ou te calas, ou te ponho a comer por uma palhinha, gritou-lhe a Carla, com ar de poucos amigos - O que te faz pensar que a Micas é ou alguma vez foi, um brinquedo descartável? Disseram-te para abrires bem os olhos. E o que é a primeira coisa que dizes? Que queres falar com a Micas sobre "vocês"? Não vês bem, ou queres que te faça um boneco? Esquece a Micaela. Aliás, se fosses minimamente um homenzinho nem sequer, te passaria dizer uma coisa dessas  depois da noite que tiveste.
- Que noite? Ah! Foi só no gozo...

A frase foi interrompida por um baque surdo. Completamente passado com tudo isto, o Alfredo tinha-se levantado e desferiu um soco valente no Chico. Ainda meio dorido, contorcendo-se com a força usada, só se justificou:

- "Amiguito"! Tiveste a tua oportunidade, não a quiseste, andaste armado em parvinho o dia todo e agora, ainda a tresandar a quecas, sais-te com essa do "vocês"? Esquece lá isso. Faz de conta que ela não existe, sim? Mas tu és mesmo assim ou gostas de comer merda às colheres? Mete uma coisa nessa cabecinha oca: Voltas a levar se estiveres a menos de cinco metros dela, ouviste bem? 

De volta para junto da Micas, esta agarrou-o e deu-lhe um beijo na cara. Naquele momento, estava mais interessada em saber se ele se tinha aleijado do que naquele momento de fúria. Sussurrou-lhe ao ouvido, sem que os outros se tivessem apercebido, a sua gratidão por tê-la defendido. Mas que não era necessário passar a vias de facto com ele. Mesmo que ele o merecesse. "Depois falamos sobre isto, a sós, tá?". Sem que o Alfredo contasse, ela tinha mostrado um lado bastante interessante, como que a querer dizer que, doravante as discussões seriam para ser tratadas em foro privado. Alfredo retribuiu o beijo concordando com a decisão.

Dos restantes, só o Ildefonso mostrou alguma comiseração pelo estado em que o Chico se encontrava. Estava a sangrar de um lábio e havia que estancar aquilo. Foi buscar um saco, encheu-o com água do rio e aplicou-o na cara do outro. O Chico nem deu conta que o Ildefonso estava ali, de plantão, a segurar-lhe o saco. Parecendo estar a pedi-las, coube à Vanessa dar-lhe mais uma reprimenda:

- Precisas de ajuda para respirar, Chico? Ou será que neste momento é que precisas que alguém pense por ti? SEGURA TU A MERDA DO SACO!!!, berrou.

O Chico parecia estar a ser castigado por todos os lados e por tudo o que tinha feito. Não querendo parecer ingrato, pediu desculpa ao Ildefonso, agradecendo a atenção. Este retribuiu com um olhar misto de "não tens remédio" com "deixa lá isso" e uma pitada de "cria juízo". 

Decididamente o dia não estava a começar bem. Num grupo que se queria coeso, havia já, pelo menos, dois elos mais enfraquecidos.

Não havendo, para já, grandes perspectivas de como passar o tempo, os três neo-casais decidiram ir dar uma volta para espairecer deixando os restantes, quais pares de jarras, ali especados sem saber o que fazer. Ainda não se tinham afastado uns dez metros e já a Andreia berrava cá atrás que não era para isso que tinham vindo passar o fim de semana. “Ou andavam juntos ou não valia a pena”, o que fez o resto do pessoal juntar-se aos primeiros, que não ofereceram resistência.

O Chico fê-lo com alguma relutância. O “Lupas”, que ainda estava de pijama desculpou-se. “Já vou.”

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