quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

As conferências ubianas “Não Calem Velhotes”

 


O Sílvio e o José são dois papagaios idosos, respetivamente de 72 e 74 anos (lembro que os papagaios têm uma esperança de vida na ordem dos 80 anos) que cantam e falam pelos cotovelos. Vivem numa residência em Massamá, em casa dos seus dedicados donos que lhes ensinaram a dizer “o André Ventura é um bronco”, frase que eles repetem amiúde juntando mais uns impropérios e umas canções de escárnio e maldizer. Tudo seria normal se os vizinhos, uns fascistas inveterados, não tivessem solicitado às autoridades que calassem os velhotes, o que, no caso daquelas aves que não têm emenda, é o mesmo que solicitar que lhes seja extraído o aparelho vocal, ou até, em última instância, que sejam destinados ao almoço dos cães da vizinhança que lhes chamariam um figo.
Quando a notícia da anunciada punição dos papagaios saiu à rua, as associações de defesa animal vieram imediatamente a terreiro condenar a desumanidade fascista dos vizinhos das pobres aves. O Sílvio e o José tiveram manifestações de apoio à porta e foram imediatamente elevados à condição de heróis pelas organizações de esquerda, que também achavam que o André Ventura era um bronco. Os vizinhos queixosos argumentaram que o que os movia não eram motivações de natureza política mas sim a incapacidade que já sentiam para suportar a constante gritaria dos prevaricadores sonoros, que não os deixavam dormir a sesta e já estavam a pô-los numa pilha de nervos e a caminho dos psiquiatras. 
A confusão instalou-se nas redes sociais e em todo o espaço mediático, e o PAN mais uma vez solicitou o apoio da UBI, universidade de referência na luta contra toda e qualquer discriminação. A reitoria da UBI decidiu então promover um conjunto de conferências com projeção internacional, usando como logotipo o famoso vinho do Porto, “Calem Velhotes”, e, num rasgo de inspiração, alterar para “Não Calem Velhotes” numa óbvia alusão aos dois papagaios idosos a quem a maldade humana queria cortar o pio. 
Como cidadão ubiano sou o primeiro a aplaudir as conferências “Não Calem Velhotes”, e se me deixarem quero ser um dos oradores. Se de facto me derem essa oportunidade iniciarei a minha apresentação levantando bem alto uma garrafa de “Calem Velhotes”, e dizendo, “Calem Velhotes?!... mas o que é isto, que censura geriátrica é esta?! Vamos calá-los, vamos restringir-lhes a liberdade, que indignidade é esta?! Não tarda estamos a apelar à eutanásia, à morte destas velhas e inocentes criaturas cujo único crime é serem fantásticas palradoras. Calem velhotes uma ova, o único velhote que merece ser calado é o velho do Restelo, essa figura pessimista e avessa à glória que Camões tão bem cantou nos Lusíadas (Canto IV, 94-97)”.  
As conferências “Não Calem Velhotes” serão certamente um sucesso aquém e além-fronteiras, e até o Instituto do Vinho do Porto já agradeceu à UBI a excelente publicidade que dará ao seu prestigiado “Calem Velhotes”. O PAN e todas as organizações “animal” já elogiaram mais uma vez a inestimável contribuição da UBI em defesa dos animais. A notoriedade e mediatização do evento está a colocar a UBI nos píncaros.
Quem não gostou foi o deputado André Ventura que num acesso vergonhoso de má educação disse que se estava, cito, “a cagar para a UBI”, que a UBI era uma universidade de ciganos, e que o seu almoço preferido era um fricassé de papagaio acompanhado com um cálice de “Calem Velhotes”, e de sobremesa um pudim de escalpe de cigano com uma calda de Catarina Martins caramelizada. 
Escusado será dizer que a comunidade cigana ficou piursa e jurou vingança, armou tal escabeche à porta do Ventura que até a pobre da coelhinha Acácia ficou apavorada e aos saltos, evacuando abundantemente com o susto e deixando um pivete a estrume coelheiro por toda a casa. A Catarina Martins, indignadíssima, juntou-se ao protesto cigano, de megafone em riste, e debitou em altos decibéis o pior que há no calão ofensivo da língua portuguesa, chamando ao André Ventura todos os nomes, sendo que “energúmeno” até foi dos mais suaves. Astuta e populista, aproveitou a oportunidade para transformar o protesto num pequeno comício, e convenceu mais de setenta e cinco ciganos a filiarem-se no Bloco de Esquerda, não tanto para aumentar o número de militantes mas principalmente para ver se conseguia enriquecer o parque automóvel do partido com alguns veículos de tração animal, só para irritar os gajos do PAN…
Em suma, e para rematar esta crónica de fim de ano, volto a sublinhar que a UBI será notícia de primeira página com o tão esperado ciclo de conferências “ Não Calem Velhotes” que terá lugar no Grande Auditório da FLC, nos dias 8,9 e 10 de Fevereiro de 2021, e onde se escalpelizará, com total liberdade e direito à contestação, a polémica afirmação “o André Ventura é um bronco”. Merecedor de honras presidenciais, o evento será inaugurado com grande pompa e circunstância por Sua Exª o Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a menos que, o que configuraria uma vertiginosa falha das sondagens, ele não ganhe as eleições a 24 de Janeiro. Em política tudo é possível, até a mais que improvável vitória de André Ventura, que, caso acontecesse, redundaria óbvia e inapelavelmente no cancelamento do ciclo de conferências ubianas, e até, quem sabe, na entrada da UBI para a lista negra da presidência. O que vale é que a UBI, que nunca se conforma com o infortúnio, arranjaria certamente maneira de reconquistar a simpatia do presidente eleito, nem que para isso tivesse que prescindir do nome UBI e passasse a chamar-se UAV, Universidade André Ventura, ou, em alternativa, UCA, Universidade Coelhinha Acácia. 

Gondri


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Momento de nostalgia…



Quando apanhei este vídeo na net os olhos ensoparam-se-me de saudade, de uma humidade que não chega a ser choro, não derrama, mas deixa nos olhos uma película aquosa onde a luz reflete com mais brilho. Senti um aperto no peito e algures na barriga, a bem dizer não sei onde, uma coisa assim de querer voltar atrás no tempo, voltar à casa dos vinte aninhos, à cena mirabolante de desmanchar a rir que agora me veio à tona da memória. Sim, embargou-se-me a voz, apertaram-se-me as vísceras e humedeceram-se-me os olhos quando me lembrei do dia em que, num saudoso jogo de futebol de onze entre ubianos, me estendi ao comprido com estrondo, de ventas no chão, e arranquei mais gargalhadas aos presentes do que uma tirada irresistível de stand-up-comedy. Lembrar-me desse tempo dá-me sempre um abafo de nostalgia, não há como evitá-lo, e eu nunca deixei de ser aquele sentimentalão que se deixa agarrar pela emoção. Arranquei com a bola em velocidade, eu que nunca joguei porra nenhuma, e ás duas por três corri mais depressa do que ela, deixei-a para trás, pisando-a, e entrei num desequilíbrio sem retorno – ou seja, a cinemática e a dinâmica desentenderam-se com a estática, e quem levou a melhor foi a estática: estatelei-me no chão como um pinheiro. 
Ao contrário do incrível herói do vídeo anexo, não fiz magia, apenas alegria. Alegria nos outros, claro, que só pararam de rir quando as pilhas acabaram. Eu, porém, fiquei ali a contas com o sofrimento agudo do trambolhão, e, deixem-me confessar, ainda tive a falsidade de rir para não dar parte de fraco. Se eu me tivesse desequilibrado por causa de uma porrada, de uma rasteira, ou coisa que o valha, caía no chão mas não caía no ridículo. Mas assim, levar a bola em corrida e meter o carro à frente dos bois, pisar o esférico cheio de ar, que deforma e reage numa lógica de mecânica de fluidos, que dá tipo um safanão quando se sente apertado…, ui, nem vos digo nem vos conto a sensação de impotência contra as leis da física e do imprevisto (naquele ínfimo instante da pisadela nem eu nem ninguém sabia onde e como é que o movimento desaguaria na inércia). Foi caricato, hilariante, tal qual aquelas modelos que atacam a passerelle em grande estilo, saltos altos tipo duas andas de saltimbanco, e que, de repente, começam aos ss, aos ss, tentando em vão repor o equilíbrio em cima daqueles arranha-céus de sapateiro, e que, depois de um esforço inglório e tristemente mediático, se esbardalham todas no chão como um castelo de cartas, doridas no corpo mas mais doridas ainda no amor próprio. Comigo foi igual, não tão grave como no caso dessas desafortunadas top models, mas ainda assim nada agradável.
Imaginem agora que aqui o je, em vez do insucesso risível  por que passou, se tem saído com uma obra de arte como a deste bacano do vídeo. O que não diriam?!... O bacano do vídeo também deixou a bola ficar para trás e tinha tudo para ser infeliz, mas quis a fortuna que em plena queda lhe surgisse a bola nos calcanhares, que tivesse os reflexos súbitos de dar um coice para cima, em jeito de catapulta, e de papar o guarda redes com uma pinta dos diabos. Imaginem agora que me acontecia o mesmo, que eu marcava deste modo o golo da minha vida, o que diria o eu cronista do eu jogador? Certamente qualquer coisa como isto: “Pélé, Maradona, Messi, Ronaldo…, qual deles teria talento e arte para, em plena corrida, rodar noventa graus até à horizontal, e, sempre em movimento, já paralelo ao chão, em levitação baixa, tocar a bola com os pés num retro-gesto de catapulta medieval, de costas para o céu, num dilúvio de genialidade, arquitectando um chapelão ao guarda-redes sem que este sequer perceba que foi papado por uma obra-prima...”. A realidade foi no entanto bem diferente, e, ao contrário do bacano do vídeo, eu não tive a bem aventurança de marcar um golo assim. Foi pena, porque o meu nome ficaria indelevelmente gravado na história comico-desportiva da UBI como o autor do golo mais hilariante, exótico e irrepetível de todos os tempos…

Gondri

domingo, 13 de dezembro de 2020

Vitor Espadinha partilhou uma foto todo nu, escrevendo, "ofereço o meu corpo à DGS para ser o primeiro cidadão português a ser vacinado contra a covid”.

 



Já lá vai o tempo em que o Vitor Espadinha, um sportinguista empedernido, oferecia os punhos para dar umas valentes murraças ao Buno de Carvalho. Disse que só não o sovou porque chegou vinte minutos atrasado, que foram os vinte minutos mais sortudos da vida do Bruno, que o Bruno devia estar era internado e andava à solta. O Espadinha apareceu então no écran das TVs, completamente fora de si e a oferecer porrada ao outro, vociferando impropérios e garantindo ao país inteiro que não eram os seus oitenta anos que o impediriam de arrear forte e grosso no meliante. Na altura ofereceu porrada em direto, agora, mais apaziguado, oferece o corpo à vacina. Cantor, ator, e, pelos vistos, também um bocado maluco, o Vitor Espadinha tirou a roupa sem qualquer propósito sensual, e, todo nu, posou para o fotógrafo que felizmente lhe desinfetou a vergonhosa aparição com uma escuridão estratégica, a tapar-lhe as partes.
Apesar de ter nome de espada, o Vitor Espadinha nunca se fecha em copas, diz tudo o que tem a dizer, o que, acredito, deve confundir os cartomantes. Espadas a trunfo é sempre um pau de dois bicos, espadas e paus, duas cartas pretas, e lá vem o Mamadou outra vez com a cena do racismo. Mas racismo para o Espadinha é a verde e vermelho, não é a preto e branco, com ele não é a supremacia branca, é a supremacia verde. Não abomina pretos, abomina vermelhos, lampiões. Não é uma questão de pele, não tem nada contra os peles vermelhas, aliás até acha que os cowboys é que eram uns grandessíssimos fdp. É uma questão de coração, de cinco violinos, de leões garbosos e imponentes, de Alvalade ao rubro, de um clube diferente, que sabe sofrer, dezoito anos de lavagens a seco e o verde não debota. 
Mais do que ator e cantor, o Espadinha é lagarto. Os lagartos que me perdoem, mas, se a verborreia verde me trata por “lampião” em vez de águia, sinto-me obviamente no direito de retribuir. Ora, não se vê como é que um lagarto nu pode ser o primeiro português a ser vacinado contra o covid. Que se saiba os lagartos estão imunes, não consta coisa diferente. 
No entanto, já se diz também por aí que o Vitor Espadinha todo nu não é um lagarto, é mas é um peixe espada, um peixe espadinha, digamos. É caso para perguntar: então agora o primeiro português a ser vacinado contra o covid é um peixe espada?!... Já se viu algum coronavírus debaixo de água, por acaso?! parece que sim… A brincar a brincar, não tarda estão a dizer que o covid é que dizimou os cardumes de sardinha, que não foi nada a pesca excessiva. E até haverá quem diga que o covid infetou a estética do tamboril, que é feio que nem se pode olhar para ele. Eu, por mim, não acredito em nada disso. Acredito, isso sim, que o covid é um vírus terreste, e que perde a virulência quando está debaixo de água. Por isso, por mim esqueçam, vacinar os peixes é tão estúpido como querer ensinar latim a um musaranho. 
Pensando bem, e para rematar esta breve crónica, o Vitor Espadinha, coitado, nem é um lagarto, nem um peixe espada, nem uma sardinha, nem nada que o valha. É um leão! Um leão nu. Esfolado, depois de dezoito anos à míngua. Um sportinguista todo nu é sempre um leão esfolado. Da juba já nem se fala. O Espadinha o que quer é ser o primeiro leão esfolado a levar a vacina, convencido de que isso lhe trará a pele de volta, e, finalmente, um título de campeão. Haja no entanto alguém que lhe explique que a vacina é contra o covid, não é contra o décimo nono ano sem ganhar. Temos pena…

Gondri

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A insustentável ligeireza da semântica


"- 'Tão!
- Que tal?
- Tá-se!
- Vamos curtir?
- Fixe!
- Bute!
(...)
- Tão? Curtiste?
- Ya! Foi uma moca!
- Podes crer!
- E tu? Curtiste?
- Curti bué, tás a ver?
- Bisamos?
- Bora lá! Vai ser totil!
- Vá'tão!"

Conversa tida num casalinho apaixonado dos tempos modernos, à porta da Campos Melo.

De sublinhar a riqueza linguística e enobrecimento da semântica. Sucinta e intencional. E ao mesmo tempo onusta de conteúdo. O que demonstra que por vezes o uso e abuso da elaboração das frases carece de sentido se muito intrincadas e com acúmulo de gambérrias na verborreia. Tal exemplo demonstra grau de abreviação num intuito comum, simplificado e sem intermédio de artefactos adicionais ou argumentos desnecessários para a realização de tais elucubrações.

sábado, 5 de dezembro de 2020

O Gonçalves e o gonçalvismo são duas doutrinas políticas…

 


Quando, na minha última crónica, a dos pescetarianos, fiz referência ao “gonçalvismo”, veio-me imediatamente à cabeça a fase revolucionária do pós-25 de Abril, então batizada disso mesmo, de “gonçalvismo”. Não entrei no entanto por aí para não estar a misturar filosofias alimentares com história política, ou, dito de outro modo, para não maçar. E passei à frente, deixando a coisa p’ra trás.
No entanto o meu amigo Fernando Merino, com a sua habitual acutilância, não me deixou esquecer a coisa e trouxe o gonçalvismo para os comentários. E eis que, de repente, quase milagrosamente, se fez luz aqui dentro desta caixa onde guardo os miolos e me lembrei de uns versos que escrevi, andava eu a estudar em Lisboa, no liceu D. João de Castro, faz alguns 45 anos. Parece de facto milagre eu me lembrar disso, rigorosamente, palavra a palavra. Não os tenho escritos, é mesmo só de memória. É certo que nestes longos anos relembrei-os algumas vezes, não muitas, em conversas com amigos, e talvez isso também tenha ajudado a mantê-los ativos no consciente. Mas, mesmo assim, tê-los frescos como se os tivesse escrito ontem, apenas por via oral, ao fim de quase meio século…
Como já tive oportunidade de esclarecer, tenho uma memória de libelinha, passo inclusivamente vergonhas com as pessoas por causa disso. Mas há coisas, uma ou outra, que ficam gravadas a ferro e fogo. Não sei porquê. Uns versos adolescentes sem os quais eu jamais me lembraria que na minha turma de então tinha um colega que se chamava Gonçalves, outro de alcunha o “peru”, e outro o “críticas”.
Na altura morava na Trafaria, no outro lado do rio. Apanhava o barco para Belém e depois ia de elétrico para o liceu. Estive em Lisboa no dia 25 de Abril de 1974. O que me lembro com mais relevância é de chegar a Belém e de ficar parvo a olhar para uma estrada que tinha o alcatrão todo abatido pela passagem dos chaimites de guerra. Acho que não me lembro de mais nada de especial. Nos tempos que se sucederam é que se instalou a confusão, na escola e em todo o lado. O período revolucionário em curso entrou em paranoia, todos os vandalismos e mais algum eram permitidos, nacionalização da banca e dos setores estratégicos, ocupações, saneamentos na reforma agrária, etc. Vasco Gonçalves era o primeiro ministro, vivia-se então a fase do gonçalvismo.
Estávamos nos longínquos anos 70. Os computadores não passavam de ficção científica, precisávamos muito mais uns dos outros para nos divertirmos. E escrevíamos poemas. O Jorge, um dos meus amigos lá da Trafaria, era de partir o carolo a rir quando trazia um poema novo. Passava-se completamente, só lhe faltava entrar em transe. Um dia chegou com um ar apoteótico, “hoje escrevi um poema muitá profundo”. “Como é que é Jorge, lê lá!”. Não precisou de ler, disse-o de cabeça “Deus é, reticências”. E conforme o disse deitou as mãos à cabeça, esfregou os cabelos com toda a força, punhos e dentes cerrados, todo maluco com tanta emoção, “tás a ver, meu, altamente, Deus é, três pontinhos, é um mistério tás a ver?!…”. “Só isso, Jorge, Deus é, três pontinhos?!”, perguntei incrédulo. “Claro, Deus não tem explicação, os três pontinhos deixam o mistério no ar, ah, cá gandá emoção…”. Era doido de todo, aquele Jorge…
Eu lá escrevia também os meus poemas. Já se foram todos, levados na levada do tempo. Todos exceto o que me trouxe aqui para esta crónica. Minto, também me lembro de um que me valeu uma reprimenda do Carlos Barra, também meu amigo e crítico de serviço de então. Era assim:

“É a menina sagrada
Indolente como a lua
E ressona sossegada
Na minha cama dourada
Que é a luz em que flutua…”

Fui todo contente a mostrá-lo ao Carlos. E levei cá um baile que até andei de lado. “Então tu vens com essas palavras todas bonitas acerca da menina, e depois dizes que ela está a ressonar?!...”, disse o Carlos, e troçou de mim quanto pôde, à gargalhada. Outros tempos…
Mas, antes que me vá embora sem dizer os versos do gonçalvismo, vou mas é soltá-los de uma vez por todas, não vá isto acabar sem eles. Então é assim, vamos cá dizer:

“O Gonçalves e o gonçalvismo
São duas doutrinas políticas
Criticadas pelo Críticas
Homem de cravo encarnado
Que atravessa o Tejo a nado
E chega à Trafaria
Onde é sempre recebido
Com imensa simpatia
Pela coninha da tia
E ainda p’lo Peru
Rapazinho mui baixinho
Que tem um grande cuzinho
E caga rochas detríticas,
De que gosta muito o Críticas…”.

Quase meio século depois, e tenho-os na ponta da língua. A qualidade é pouca, mas não é disso que se trata. O que estes versos têm de especial, para mim, é o facto de já fazerem parte da minha mobília craniana. Uma memória assim num tipo que é uma nulidade em termos de memória não deixa de ser, pelo menos, inacreditável. Para mim é um mistério…

Gondri


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Sermão de São Gondri aos pescetarianos.

 

Para quem não sabe, o pescetarianismo, ou piscitarianismo, é uma derivação do vegetarianismo em que se pode comer peixe e marisco. Com tantas variações modernas, umas mais “in” do que outras, suponho que também já esteja patenteado o franguirianismo (derivação do vegetarianismo em que se pode comer carne de frango), o vaquirianismo (derivação do vegetarianismo em que se pode comer carne de vaca), o porquirianismo, o borreguirianismo, o peruirianismo, e tantos outros cujas características facilmente se podem inferir do nome.
Isto não considerando o canibalismo onde também existe um grande número de variações, como por exemplo o manuelrianismo (derivação do canibalismo em que não se podem comer pessoas com o nome Manuel), o joaquinrianismo (derivação do canibalismo em que não se podem comer pessoas com o nome Joaquim), e assim sucessivamente. Eu, por exemplo, que consto no BI como José António Gonçalves Rodrigues, cheio de medo de ir para a mesa dentro da travessa, defendo obviamente o Josésismo, o Antónismo, o Gonçalvismo e o Rodriguismo. (Só para que conste, o último rei de Portugal, D. Manuel II, chamava-se Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Saxe-Coburgo-Gotha e Bragança. Oficialmente morreu de um edema na glote, em 1932. Mas, cá p’ra mim, foi é comido por um canibal sem paciência).
Mas a presente crónica não tem como objetivo listar o vastíssimo leque de variantes alimentares, antes se foca unicamente no pescetarianismo. Os peixes não sofrem? – pergunto. Ó ubianos pescetarianos - que os há, certamente -  então um robalo, uma sardinha, um cherne, etc., não são seres sencientes? Nunca viram o desespero sofrido de um peixe quando é pescado, os saltos, a luta frenética contra a morte? Ou será que preciso de vos meter dentro de um barco de pesca para verdes a mortandade dos inocentes, as redes assassinas cheias de seres que têm tanto direito a viver como os que vivem fora de água... Que raio de discriminação é essa, o que é que uns pulmões têm de mais respeitável e merecedor de compaixão do que umas guelras? Cavalo não comem, se for cavalo marinho já comem, que é isto?!...
Se os peixes andassem por aí aos saltinhos no meio da rua a respirar o mesmo ar que vocês respiram, certamente que não os classificaríeis de animais de segunda. Mas infelizmente eles andam esquecidos nos rios e no mar, estranhamente distantes, e não entram nas cogitações de quem se lembra de abraçar um cachorrinho, de pegar num coelhinho, de fazer festas a um bezerrinho, ou até de aconchegar pintainhos na cama como eu aconcheguei quando era garoto coisa que me saiu cara porque eles borraram tudo e eu levei uma valente tareia da minha mãe.
Se vivêsseis no mar como os peixes não teríeis coragem de abrir uma exceção na compaixão. Se eles vos viessem comer à mão, se vísseis como se deixam tocar e beijar, e como criam laços, não teríeis coragem de os comer. Eles não têm raiz, não têm caules nem folhas, não fazem fotossíntese, não lhes sobe a seiva pelo tronco. São animais. Por isso, ó ubianos pescetarianos, vos peço de mãos postas, vegetarianai-vos! Vegetarianai-vos, mas vegetarianai-vos a sério, a cem por cento, que isso de vos vegetarianardes com a exceção dos coitadinhos dos peixes é o mesmo que ter três peidos para dar e só dar dois…

Gondri


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Pode-se ou não contrair a Covid-19 através de um gesto?


Estudos recentes efectuados na Universidade da Beira Interior, mostraram ao mundo que a Covid-19 pode ser transmitida através de um simples gesticular. Ao fim de quase um ano de estudo comportamental diário, chegou-se a tal conclusão porque a Directora Geral de Saúde - finalmente - entrou no quadro negro dos infectados com aquele vírus, fazendo um pouco jus àquela máxima do "olha para o que eu digo, não olhes para o que faço".

Se no inicio da pandemia se chegou a constatar por vídeos lançados na net sobre a forma ideal de abrir uma garrafa de água e despejar o seu conteúdo num copo, numa manobra que faria corar de inveja o Luis de Matos, tal a destreza de mãos demonstrada para o efeito, gerou-se por instantes a sensação que a senhora estaria imune à virulência tal a forma como a tratava por tu. 

Porém, ao longo do tempo, verificou-se igualmente que a dita senhora ia padecendo de um quadro sintomático que se poderia descrever como "muito confuso". Ainda estão presentes aquelas declarações que diziam que "é proibido sair de casa mas pode sair para passear o cão ou fazer pequenos passeios higiénicos". Pouca sorte para quem tinha gatos, periquitos ou guppies em casa, que nunca poderiam usufruir dos mesmos direitos que os seus parentes caninos. Cães e filiados no PCP estavam portanto imunes à bicharada e quem tivesse um militante em casa, poderia igualmente sair para passeá-lo.

Mas voltando ao cerne da questão questionou-se como é que a dita senhora contraiu tal maleita. Ora, para quem esteve com atenção aos tempos de antena que esta teve ao longo do ano, verificou-se que, para além da dita garrafa de água mais o imprescindível copo, Graça Freitas  fazia-se acompanhar da presença de um intérprete de linguagem gestual que não parava quieto. 

Antigamente, estes elementos apareciam numa janela no canto inferior direito do écran, isolados dos demais, como forma de traduzir o que estava a ser dito. E que se saiba, nessas alturas, ninguém contraía o que quer que fosse. Nem uma simples gastrite ou panarícios. Nada!

Ao se incluir no mesmo espaço um intérprete de linguagem gestual, mesmo que com o devido afastamento imposto pelas autoridades sanitárias, o que se foi constatando foi que aquilo era como uma bomba prestes a explodir. Como as partículas andam no ar, bastava ele dizer  - por gestos - que ia mudar de parágrafo - como se fazia outrora com as máquinas de escrever - e as partículas "envirusadas" que estivessem à sua direita, iriam ser transferidas para o seu lado esquerdo num abrir e fechar de olhos. Independentemente deste intérprete se encontrasse atrás dela, à esquerda ou à direita, informar o público que era proibida a deslocação aos courts de Roland-Garros ou Wimbledon, era um risco acrescido porque aumentava exponencialmente a difusão de partículas infectadas pelo ar circundante. O simples facto de se barrar manteiga no pão chegou a ser omitido nas declarações por agitar o ar em demasia e o que é um facto, é que ao longo deste tempo todo, nunca a ouvimos a fazer referência a isso. 

Portanto, a dita senhora encontra-se agora em quarentena devido a um perdigoto gestual que se deslocou do ponto A algures naquele espaço conferencial para o ponto B que se encontrava algures entre a narina esquerda e o lábio inferior, segundo se desconfia. E para piorar as coisas, em momento algum se vê o mesmo intérprete de luvas, como mandam as boas práticas sanitárias.

À directora da DGS endereçamos os nossos votos de rápidas melhoras e recuperação. E pensar que a vida é bela e que há que encontrar sempre esperança neste cenário apocalíptico em que nos encontramos actualmente. Marta Temido, dixit.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Porque é que não a obrou você?...

 

Em arte já nada me surpreende. Tem uns anos largos fui a uma bienal de arte moderna com uns amigos. Foi a primeira vez que me cruzei com a arte contemporânea ao vivo, e dali em diante fiquei tão confuso que tudo me parecia arte, até o cagar de um pássaro. Ao correr o salão onde as obras estavam expostas só as consegui distinguir porque cada uma tinha uma pequena placa identificativa, com o nome do autor, o nome da obra, e não sei se mais alguma coisa. O próprio quadro da eletricidade, ou o sítio do extintor (vide foto anexa), passariam perfeitamente por pertencer ao acervo de obras expostas, não fosse o facto de não terem a tal placazinha a identificá-las. Aquela foi a minha primeira vez, e eu não consegui explicar a mim mesmo o que raio estava eu ali a fazer, e porque é que aqueles autores eram artistas e eu não.
Bem, mas feita esta breve introdução vamos cá então à história que vos quero contar. Antes que pensem que é invenção começo já por esclarecer que não, que esta se passou comigo e foi decerto uma das saídas mais felizes que eu já tive. Feliz e espontânea,  como tinha que ser para ficar para memória.
Íamos então nós a passar em frente a umas tábuas que ali estavam, na vertical, e que tinham uma inscrição que as identificava como sendo uma obra, e exclamei, com escárnio e ironia:
- eh pah, p'ra fazer isto é preciso ser um génio...
Uma senhora que estava ali prantada, ao lado da obra (supostamente a autora?!...), afinou e reagiu, ainda assim educadamente:
- olhe, desculpe a intromissão, mas se o senhor diz, em tom de gozo, que é preciso ser um génio para fazer esta obra, porque é que não a fez você?...
E eu, em menos de nada:
- é que eu não sou génio, sou hidrogénio, e como sou mais leve do que o ar, subo e bato com a cabeça no teto, e fico tão atordoado que não sou capaz de compor tão maravilhosa obra de arte...
A risada foi geral. (Geral, salvo seja, a senhora ficou com cara de pau, sorriso zero). E nós lá seguimos, em direção à obra seguinte, deixando um rasto de riso pela sala...
Ou seja, aprendi por aquela senhora que o que conta para que alguma coisa seja tomada como obra de arte é o facto de o seu autor se lembrar de a fazer. Isso para mim é ótimo porque por acaso até sou pessoa de me lembrar de muitas coisas, o que joga a meu favor porque a coincidência de alguém se lembrar do mesmo e me tirar a originalidade é muito reduzida. Aliás, agora que falamos nisso, até me estou aqui a lembrar de uma coisa que muito provavelmente não passa pela cabeça de mais ninguém. Vou obrar no meio de uma exposição de arte moderna, vai ser um poio bem grande, um produto da minha desassimilação e da minha má educação bem visível e mal-cheiroso. E se alguém chegar e reclamar da obra como eu reclamei das tábuas verticais da outra, digo-lhe o mesmo: - porque é que não a obrou você?..

Gondri

domingo, 29 de novembro de 2020

O sermão de Santo António aos Peixes.

 


Eu nunca fui uma pessoa rebelde, sempre fui muito acomodado. E confesso não tenho prazer nenhum em ser assim, até porque isso me pregou muitas vezes ao chão quando devia ter saltado. A propósito dessa minha passividade lembro-me de um episódio que ainda agora me faz irritar-me comigo mesmo por não ter encalacrado uma certa senhora que bem o merecia.
Andava eu no liceu a caminho de um dia ser ubiano, e, na primeira aula de Português, o professor disse-nos que andava uma grande confusão no Ministério da Educação e que nem ele sabia ainda ao certo qual era o programa da disciplina para esse ano. De qualquer maneira, adiantou-nos que em princípio íamos dar o padre António Vieira e pediu-nos que fossemos à papelaria do liceu perguntar se o Ministério da Educação já tinha mandado alguns folhetos do Sermão de Santo António aos Peixes. 
Acontece que eu precisava de ir à papelaria comprar não sei o quê, e mal acabou a aula dirigi-me logo para lá, já com o intuito adicional de perguntar também pelos folhetos do sermão do padre António Vieira.
Cheguei não havia ninguém, e dirigi-me à empregada: 
- o meu professor de português disse que o Ministério da Educação ia mandar folhetos sobre o Sermão de Santo António aos Peixes do padre António Vieira. Por acaso já vieram?
A empregada não saiu do silêncio e nem tão pouco se dignou olhar para mim. Eu não percebi nem imaginei que ela estava furibunda, e insisti:
- olhe desculpe, queria saber se o Ministério da Educação já mandou folhetos sobre o Sermão de Santo António aos Peixes.
Ela nada. Insisti mais uma vez e finalmente reagiu, com a cólera toda à solta:
- não goze comigo que levo-o já ao diretor! (mais coisas disse em abono do seu bom nome, da sua dignidade, e etc..., sempre zangada e ofendida, com cara de tanque de guerra).
Eu olhei para ela atónito e com vontade de a mandar à merda, mas, esta minha maneira de ser, de brandos costumes, acabou mais uma vez por ditar a solução mais cómoda, ou seja, não valia a pena estar a chatear-me. E fiz meia volta e pus-me a andar, sem mais dizer, percebendo obviamente duas coisas: que os folhetos ainda não tinham chegado e que eu tinha sido vítima dos estragos que o título insólito da obra tinha feito na ignorância da empregada.
Porém, e é isso que ainda hoje me irrita, só tenho pena de não lhe ter dito, ali mesmo nas trombas, “pois minha senhora, se me quer levar ao diretor, então vamos lá", só para ter o prazer académico de me rir em coro com o diretor…

Gondri

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Desconstruindo o Jet-Set

 

 

Detesto gente que se acha superior. Reparem, queridos leitores, ter dito "achar" e não ter apenas escrito a frase sem essa conjugação verbal. Reconheço excelência quando a vejo, não quando ma querem impingir. Nada mais me revolve os nervos que gentalha dessa espécie, de postura emproada e semblantes vascosos a darem-se a ares. O simples facto de se considerarem diferentes ou pertencentes a uma seita que não se mistura com os demais, transforma aquela grupeta em algo tão ridículo quão execrável é a sua razão de ser. Escondem as suas práticas intocáveis de uma forma tão estúpida quanto inconsequente. Normalmente deambulam em manada. Mais habitualmente socializam de forma contida, julgadora e sempre com o semblante vultoso de quem não se mistura com qualquer um. Para eles, os outros são menos que símios. Reles escarros da sociedade que os sustenta nas suas manias e os apascenta nas suas necessidades mais básicas. Trajam e adquirem tudo quanto é bom e rico e tratam-se por você. 

A raia miúda vê-se, normalmente, como cobaia no que toca à adopção dos seus nomes próprios com a introdução dos que fogem ao vulgo. Adoptam nomes já em desuso como forma de os tornar ainda mais diferenciados dos demais mortais. Aquilo que para o comum habitante do planeta é tido como normal, não servirá senão para preencher a árvore genealógica da criadagem e demais ralé que lhes atura as manias. Num cenário onde todos os nomes se esgotarão, imagino-os a serem baptizados de Manuel Berbequim e Maria Gadanha, como forma de tornear a questão de se ser diferente. Também é muito comum adoptarem a hifenização dos apelidos paternos como forma de reforçar a raça e demonstrar diferença, status e sobranceria.

São useiros e vezeiros em bailes e outras manifestações pífias de poder social. Comportam-se com ar distinto e introverso. Não se permitem fugir ao instituído pelos ditames da casta em que se inserem senão quando em grupos menores, da sua faixa etária. Os mais novos têm de ascender a um nirvana especial no meio da sua juventude púbere em bailes de debutância, que é uma espécie de feira de gado onde predomina o tule, os tafetás e os cetins. Orbitam em torno dos seus progenitores muito ao género dos bailes no Palácio de Versailles no tempo do Luís e da Maria, antes desta perder a cabeça.

A corja masculina traja normalmente com motivos marítimos, sem no entanto, terem tido qualquer experiência marítima que não ao leme de um iate vistoso ou de um barquinho à vela qualquer. Normalmente, estudam nos melhores colégios, sem que isso signifique um aumento considerável nos seus QI's. Aliás, os temas de conversa, versam maioritariamente sobre temas banais, porém tido como excelsos. Temas que passam ao lado do normal dos mortais mas que para eles, são de suma importância na sua trajectória de ascensão social. Não dizem asneiras nem lêem nada com palavreado porco, que isso faz mal às vistinhas. São escabrosamente polidos. Não praticam desportos que promovam o contacto físico, pois isso pode provocar lesões e isso é coisa inferior. São autênticos betinhos e candidatos por natureza a altos cargos na banca, no sistema judicial ou na vida política e são sempre membros mais activos nas "jotas" de direita. Ou isso ou são acérrimos defensores do ideal monárquico. Lutam toda a vida com unhas e dentes contra o papão do socialismo que é aquela coisa que come crianças ao pequeno almoço. Vão todos os domingos à missa porque é bem. Não porque lhes faça falta. Nem sequer sabem para o que isso serve. Podia ser a missa ou dançarem um fandango em tanga, que, desde que tal prática fosse institucionalmente aceite, seria costumeira e comummente aceite. 

Já o zoo feminino é outra coisa. São formadas para serem coisa nenhuma. Meros adereços da parte masculina e com graus de preocupações mínimos. Troféus para troca entre as diversas castas, de forma eugénica, educadas a rigor para a continuidade da raça durante longos períodos da história. Não se lhes é atribuído nenhum cargo importante que não o de estarem sempre predispostas à procriação e marcação de chás e outros eventos dedicados à cáfila predominante. Sempre que podem ou lhes é permitido, aventuram-se no exterior sob a forma de Madres Teresas, dispostas a ajudar os ímpios a fim de alcançarem um nirvana pessoal que apenas lhes preenche o currículo. Encabeçam movimentos solidários, sem, no entanto, arregaçarem as mangas para tocar seja no que for, que está sujo e é horrível. É vê-las, vezes sem conta, demonstrarem o seu desagrado e repulsa quando na presença de um indigente, sujeito que as faz fugir dali como quem foge da peste. Ao mais pequeno miasma de podridão os seus ADN's sofrerão mutações irreparáveis. Mais do que a ala masculina, a feminina faz uma triagem aprofundada ao LOP dos seus potenciais parceiros, quebrando algumas vezes o hermetismo nacionalista e cruzando-se com candidatos provenientes de outras casas, sempre europeias. 
 
Em tempos, houve um caso de perfeita adaptação por parte de um caloiro da UBI que pouco tempo depois de ter chegado e se ter desconfiado da sua proveniência aristocrática, foi incumbido de conduzir a burra na latada. O moço achou tanta piada ao acontecimento que jurou a pés juntos conduzir a burra sempre que pudesse em latadas futuras. Mal as fotografias do evento começaram a circular nos meandros familiares, levou uma reprimenda tal, que foi proibido de frequentar o clube de vela do qual fazia parte em Cascais e para castigo, o pai providenciou que ele fosse o caddy de um novo rico qualquer, nos campos de golfe da zona. 
 
Também existem relatos de uma caloira ubiana que tão depressa passou de "tia" a "enteada", tal a forma como deixou de vez a fonética típica de tal raça, pondo de parte o "p'cebe" e o "oh rica" e dando liberdade ao calão mais normal de uma rapariga daquela idade. O facto de andar sempre com um "cão a pilhas" enfiado na sua valise, também não ajudou à missa, tendo sida interpelada várias vezes pelo conselho pedagógico com um rotundo "Ou a menina ou o cão! Só recebemos o pagamento de propinas de um!". Tais ocorrências não passaram despercebidas à progenitura que assim que pôde, enviou-a para um colégio interno nos arredores da Merdaleja com o intuito de lhe aplacar tais vociferações. Debalde, já que, de volta à Covilhã, a sonoridade vigente rapidamente se apoderou das suas cordas vocais, trazendo-a à normalidade. Hoje, é formada em Gestão e é dona de uma grande central de camionagem. É tida como uma mulher que sabe comunicar com os funcionários porque não têm manias de "gente riquérrima, sei lá...".
 
Os progenitores são um misto de inexperiência com vaidades, trafulhice e desdém. Dormem em quartos separados porque isto de dar uma bufa debaixo dos lençóis é pratica que só se vê nas classes inferiores. O socielite não se peida; alivia-se timidamente. O jet-set, não caga; defeca. A aristocracia não arrota. Permite abrir a válvula do ar com comedimento e dissimulação. Normalmente gozam de uma fortuna que nem é assim tão avultada quanto isso. Porém é gerida religiosamente através de um gestor de fundos, aparentado e com jeito para alta finança, que lhes permite usufruir de uns pés de meia relativamente generosos para, quanto mais não seja, poderem cortar as unhas. São habitués nos centros de estética e plástica, já que há uma grande tendência para que as avós se pareçam da idade das netas. Não rogam pragas, porém adoram uma coscuvilhice qualquer gerada por um vidente da alta, que lhes propicia mais delicias que o Zandinga a apregoar que a Ponte D. Luis tinha os dias contados. Há muito que deixaram de procriar. Porém aliviam-se com elementos do sexo oposto amiúde desde que o dito parceiro não dê com a língua nos dentes. Para isto, qualquer um servirá para lhes proporcionar momentos de êxtase, desde que previamente lavado. Normalmente são pessoas descartáveis e de estatuto inferior. A maior parte deles, acredita facilmente no conto do vigário, como foi com o caso de Ricardo Salgado e companhia.

Sobrevivem, ninguém sabe como nem porquê, e é estranho ainda não terem dado em maluquinhos à custa das misturadas que fazem dentro da espécie. Até um cão tem um registo de pedigree mais cuidado. Além de que, por ser cão, estabelece melhor comunicação com os seus donos.


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Nem os mistérios divinos escapam à UBI. Não tarda descobre também onde é que fica o Inferno…

 



Andei a vida toda a querer saber onde é que ficava o Céu. Sabia que se me portasse bem era para lá que ia, e diziam-me que era um lugar maravilhoso. Tão maravilhoso quanto o Inferno era tenebroso. Valia a pena portar-me bem, era um bilhete para a felicidade eterna. Não sabia onde ficava, diziam-me que era lá em cima. Também não sabia onde ficava o Inferno, tinha medo só de pensar. Se me portasse mal levavam-me para lá e eu teria a eternidade toda para lamentar o meu mau comportamento. Por isso mais valia jogar pelo seguro e acreditar, não fosse chegar a hora e ser tarde demais. Havia também o purgatório, uma espécie de plataforma pré-celeste para as almas que, sendo destinadas ao Céu, não tinham no entanto entrada direta. Precisavam de expiar primeiro alguma culpa que ainda transportavam, de se purificar, e só depois estavam habilitadas a entrar no reino dos céus. Tal como acontecia com o Céu e o Inferno, eu não sabia as coordenadas do Purgatório, não sabia se era por cima ou por baixo, p’ra lá ou p’ra cá, era mais um lugar incógnito que, segundo me diziam, ninguém sabia onde ficava. Às vezes ficava a mirar o firmamento, nas noites mais límpidas, e indagava-me se o Céu não estaria nalguma daquelas estrelas luzentes. E se não estivesse onde estaria, no fundo do mar, no interior da terra, onde?!... 
Imaginava muitas vezes o Céu, um lugar colorido e luminoso, onde as pessoas encontravam antigos amigos e experimentavam o expoente máximo da felicidade, e, entre outras coisas, encontravam Deus. Não imaginava como era Deus, mas não cria que tivesse forma de homem. Supunha-o incorpóreo, omnipotente, quiçá uma energia superior que manifestava a sua presença através de uma voz grave, envolvente e poderosa.
Ao invés, o Inferno era um lugar assustador, a arder, pleno de dor e sofrimento, de gritos lancinantes, onde os pecadores se reencontravam no meio das labaredas expiando para sempre a culpa de uma vida terrena a praticar o mal. E era lá que estava o Demónio, também chamado de Belzebu. Desse eu já tinha uma imagem, um monstro de cara feia e cornuda e com uma forquilha na mão.
À entrada do Céu estava São Pedro, uma espécie de assistente de Deus que ajudava no papel de coador. Só deixava entrar no Céu quem, após aturado interrogatório acerca da sua vida terrena, demonstrasse merecimento. Sobre ele edificara Cristo a sua igreja, tinha a chave dos segredos da vida e da morte, e a resposta às grandes questões nunca respondidas. Se eu pudesse sugava-lhe toda a informação secreta, perguntava-lhe sobre o destino das almas, sobre o princípio do mundo, sobre a natureza de Deus e a sua omnipotência, disparava contra ele todos os meus porquês. E far-lhe-ia aquela pergunta primordial que um dia fiz à minha catequista e que desde então nunca me abandou: onde é que fica o Céu? Era bom que o São Pedro me respondesse, mas já sei que isso não é possível. Por isso, à falta de melhor, tenho que me valer das palavras de Ney Matogrosso que, ao que parece, têm a resposta que eu procuro. Diz ele que não existe pecado no lado de baixo do equador. Ora, sabendo-se que o céu é por definição o lugar onde o pecado não existe, então facilmente se deduz que é aí que fica o Céu, no lado de baixo do equador. Mas atenção, lá por Ney Matogrosso o dizer não quer dizer que seja verdade. É preciso prová-lo. E é isso mesmo que foi proposto a um grupo de investigação da UBI, essa catedral do conhecimento. O estudo já está em curso, e assenta naquilo a que os investigadores denominaram “experimentalismo metafísico”. A comunidade científica mundial está estupefacta. Usar as ciências exatas na área da filosofia - e na teologia em particular -, explicar os dogmas de fé com recurso a formulações matemáticas, é um feito prodigioso. O pioneirismo da UBI está a colocá-la em patamares de excelência nunca antes vistos. O ultimo artigo “made in UBI”, publicado na revista Science, explica como é possível aplicar o teorema de Pitágoras ao triângulo da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Mas esta e outras descobertas são apenas passos intermédios em direção ao objetivo final: mostrar se Ney Matogrosso está certo ou está errado, se o Céu fica ou não no hemisfério sul. 
As casas de apostas não têm mãos a medir. Segundo rezam as notícias o “não” vai à frente, mas ainda é muito cedo. Está tudo à espera que a UBI termine a investigação e divulgue os resultados. A inveja das outras academias pressente-se em cada canto, e até a universidade de Harvard, que vai certamente perder para a UBI o primeiro lugar no ranking, já teceu considerações depreciativas que só lhe ficam mal. As teorias da conspiração também não param de surgir. A última é que o resultado vai ser “não”, porque, como está no hemisfério norte, a UBI nunca admitirá que é a sul que está o Céu (uma questão de bairrismo, quer-se dizer, de hemisferismo).
Enfim, esperemos para ver, já não falta muito… Se a conclusão for “sim”, o caso está resolvido. No entanto, se for “não”, seguir-se-á uma segunda fase da investigação até que se determine, com exatidão, onde é que de facto fica o Céu. De uma forma ou de outra, seja qual for o desfecho, o que a história guardará é uma UBI que, certo dia, alcançou gloriosamente a imortalidade…

Gondri

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O COVID e a prostitutaria (*)


Tempos difíceis, estes que vivemos. Esta pandemia veio em má altura. Aquilo que mais temíamos vir a acontecer - tal como num filme de ficção - só no ano 3087, caiu-nos em cima mil e sessenta anos antes. 

Há dias vi um, da década de oitenta, onde o pobre desgraçado do guionista "construía" um cenário em 2017 com carros futuristas sem rodas a circularem uns por cima dos outros num cruzamento vertical, plasmas interactivos, ciborgues, robots e mais não sei quantos frutos da IA já cruzados com humanos e pensei... "Este gajo passou-se!". estamos em 2020 e nada disto ainda aconteceu.

Nesse filme, uma alma solitária coabitava com uma boneca robot, de série descontinuada, porém do melhor que já havia sido feito. Um pouco como o Windows XP e as belas merdas com que a Microsoft nos impinge actualmente. O dito filme, começava praticamente com uma "bimby loira" boa como o milho, porém de QI muito baixo, a fazer as lides caseiras, toda aprumada, sem ódios nem rancores que lhe questionassem as sua condição feminina e que, tendo provocado picos de testosterona no seu dono, enquanto lavava a loiça, foi atacada por trás e aquilo passou a vias de facto ali no chão da cozinha. A coisa foi tão tórrida que lhe queimou os fusíveis - fruto do chão molhado com que a cozinha ficou - e a deixou com os olhos pregados no tecto, inerte e em modo "blue screen com erros no kernel". O dono, tinha cara de parvo e nunca tinha estado com uma mulher a sério. Mas isto não vem ao caso.

Agora em 2020 podemos constatar que para um carro circular em cima de outros, é porque houve um acidente dos grandes, os robots ainda só nos ajudam em casa ou no trabalho,  como aquele queijo que limpa o chão ou aquela mega-torradeira que, quando programada, tanto faz uma belíssima feijoada como um pudim "caseiro" mas de gosto duvidoso. Ou a máquina do café. E são tempos difíceis porque, para lá do "optimismo" do criador de tal obra cinematográfica (Não! Não foi o Ridley Scott com  o Blade Runner mas sim uma imitação rasca) as coisas ainda não são como parecem.

As vicissitudes dos tempos pandémicos que vivemos actualmente mudaram-nos muitas rotinas diárias tendo remetido para muitas práticas que, aqui há um ano atrás, nos fariam pensar duas vezes ou demonstrar tanto cepticismo como abertura. Todo o paradigma foi alterado. Hoje desconfiamos do gajo que espirra ou da gaja que diz que a comida não lhe sabe a nada, quando sabemos que lhe despejámos uma lata de malaguetas. Se aqui há uns anos valentes, todo o ser que quisesse "pular a cerca" podia fazê-lo despudoradamente, agora todo o cuidado é pouco porque, para além do "bicho" em si, há mais factores que podem transformar uma união de duas pessoas num caso muito sério  de guerrilha conjugal. 

Imagine-se por momentos um fulano, digamos que em 1992, que tem por hábito despender parte do seu ordenado em casas de alterne. Bebe uns copos, entra para o quarto, paga pelo serviço e avia a moça... Avia é como quem diz! Na prática ele paga para ser aviado. Ele é que é o freguês que paga por um bem ou serviço, por isso, ela que trabalhe. Ainda me mete um bocado de confusão um gajo pagar e ainda por cima ter de trabalhar. Mas isto sou eu que nunca usufrui desses serviços - Ok. Já entrei, mas nunca consumi carne - nesses antros. Continuando: o gajo é trabalhado, sai dali e vai para casa, feliz, contente, e aliviado tanto na carteira como no ego. Chega a casa, toma um duche rápido e deita-se e retoma a sua vidinha de casado conforme pode e a mulher deixa. A saber-se da facada, só se houver fugas de informação, falta de sigilo profissional ou escassez de fundos. Ou se falar muito durante o sono.

Resultado:
Caos alto porque falta pilim nas contas da casa. 
Teor de drama:
moderado a alto por causa da justificação parva encontrada para explicar a falta de fundos.

Façamos agora, o mesmo exercício em, por exemplo, 2017: Em vez de ir às meninas, conhece uma gaja numa sala de chat num grupo qualquer do facebook e marcou um encontro com ela. Copulam com consentimento mútuo e no meio da brincadeira, alguém se lembra de filmar a acção com o telemóvel. "Ah! Que giro! As caras que fazes! Ficas bem de lado! e Blá-blá-blá!". Trocam a epopeia da trancada "partilhando" o movie um com o outro. Quando acaba, traz um vídeo comprometedor no telemóvel. Que se encontra no bolso do casaco. Chega a casa, toma um duche rápido e deita-se e retoma a sua vidinha de casado conforme pode e a mulher deixa. A saber-se da facada, só se houver insistência por parte da gaja em telefonar-lhe constantemente para um novo encontro, ou porque a mulher descobriu um vídeo comprometedor que o gajo se esqueceu de colocar em pasta privada.

Resultado:
Caos instalado porque a gaja ameaça com um divórcio enquanto ele tenta provar por todos os meios, que o gajo do filme é muito parecido com ele e que naquele dia ele passou a noite a dar banho ao cão.
Teor de drama:
Altíssimo porque eles não têm cão.

Agora traslademos o mesmo cenário para este da pandemia. O gajo fartou-se da mulher naqueles meses largos de confinamento. Aquilo que era uma relação sólida, esboroou-se porque a gaja ficou mais gorda, mais chata e o gajo - ao fim de não sei quantos anos de casado, chegou, em menos de uma hora, à conclusão que era infeliz. Procura no Tinder por uma senhora que esteja com vontade de ter a senaita devidamente fustigada e quebrar a monotonia que tem vivido nos mesmos tempos, com o emplastro do marido a minar-lhe o juízo e a sebar como um porco no sofá, agarrado ao comando da TV. Marcam um encontro e lá vão eles, felizes da vida, dar uma rapidinha em local combinado. A gaja está infectada. Ele não. (Ou vice versa, porque no final, dá no mesmo). Quando acaba, traz um vírus comprometedor no corpo. Que se encontra em expansão no seu organismo. Chega a casa, toma um duche rápido e deita-se e retoma a sua vidinha de casado conforme pode e a mulher deixa. 

Dias depois, começa a perder o olfacto, o paladar, tosse que nem um desalmado e anda febril. A mulher vai achando que se trata de uma simples gripe até que o SNS lhe telefona para casa e da linha de apoio lhe fazem o questionário do costume: "É casado/vive com alguém?", "Teve algum contacto de proximidade com alguém nos últimos dias?", "E a que distância e por quanto tempo?", perguntas suficientes para fazerem estremecer os alicerces de qualquer união.

Aqui, das duas uma: ou o gajo responde afirmativamente às perguntas e chiba-se todo ou mente com quantos dentes tem e "não sabe como apanhou aquilo". Dias depois a mulher (ou v.v.) que já não andava muito católica sem ajudas extra portas, começa a mostrar sintomas de ter contraído o "bicho". Acusa positivo. "Como se nunca saí de casa?" ou "Como, se tomo sempre todos os cuidados e mais alguns?". Pior se for "Já não estou com ninguém desde que esta merda começou e só aquela besta saiu há dias para fazer não sei o quê..."

Resultado: positivo nos três.
Teor de Drama:
Apocalipse bíblico e nuclear eminente porque o gajo acusa a amiga de não se lavar, e a mulher dele acusa-o de irresponsabilidade, cornice e outras adjectivações, mesmo aquelas em que lhe demonstram que ou a outra era uma puta, ou o gajo não é suficientemente fornecido e que aqueles anos todos foi um martírio ter de copular com ele. E que fingiu orgasmos. 

Moral da história: Em tempos de Covid, nem as actividades "paralelas nas esquinas do submundo" se safam. A menos que se trate de um Tibúrcio qualquer que "já nem sabe onde começa a coisa dele nem onde acaba" e que permita "escovilhar" alguma púncia a 2m de distância, toda a população mundial corre sérios riscos de se autoextinguir. Ainda falta um bocado para 3087 onde, muito provavelmente andará toda a gente de óculos escuros, porque apenas uma troca de olhares bastará para que o planeta fique mais povoado do que já está. Ou que haja bonecas (e bonecos) mecânica/os para deixar que a malta se deixe de merdas e em vez de andar por aí a largar bicheza por todo o lado, se cinja apenas a manter o numero da população mundial controlada bem como a saúde pública. Ou isso ou ter de aturar as gajas. Ou vice-versa.

(*) putaria

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO XV - ALGUNS ANOS DEPOIS

 


E eis que o grande dia do agendado reencontro, tinha chegado. Todos tinham finalizado os seus cursos e haviam combinado encontrarem-se no Covão da Ametade naquele dia de Verão, alguns anos depois. 

A Carla e o Osório, tinham-se mudado para o Cartaxo, viviam em "união de facto" e tinham dois putos, reguilas como o raio. Ele tinha ganho algum peso. Mas a Carla tinha perdido o que tinha a mais e ainda hoje ninguém acreditava que ela tivesse sido uma compradora de tamanhos XXXXL. Mesmo com dois putos saídos dali de dentro apresentava uma forma física invejável, muito a fazer parecer a Vanessa dos seus tempos áureos. Tinha virado adepta das sojas e dos tofus e a única carne que comia era a do alentejano. Cada vez mais à bruta porque, com peso a menos, a moça tinha adquirido outras habilidades e valências.

A Micaela e o Alfredo tinham ficado na Covilhã. Eram agora professores na UBI. Eram casados e tinham um casalito de miúdos. Eram a dupla de professores mais acarinhada daquela universidade pois nunca se negavam a manifestar o carinho que nutriam um pelo outro, fosse na frente de quem fosse e em qualquer altura.

Já a Marina e o Dominic tinham acabado o curso juntos, mas pouco tempo depois separaram-se e cada um seguiu a sua vida. Ela, casou-se com um rapaz de Aveiro que tinha cursado medicina no Porto. Ele, fixou-se em Lisboa e está solteiro. A separação tinha deixado marcas muito dolorosas e não se falavam desde então. Ainda não se sabia se algum deles viria ao encontro. Para piorar as coisas, de vez em quando, cruzam-se na cidade da ria, dada a proximidade daquelas localidades, o que provoca desconforto em todas as partes.

O Chico mal acabou o curso, mudou-se de armas e bagagens para Praga, onde vive hoje com a Anishka. Manteve sempre o contacto com ela e não seria de estranhar que se juntassem alguma vez. Enquanto estudante ubiano, saía para o Porto ao fim de semana, sempre que podia, para ir matar saudades da amiga. Ela retribuía estes agrados mas desta vez em modo solitário. Têm quatro filhos: 1 rapaz e 3 meninas. Que nisto de brincar aos médicos, como se viu, o Chico nunca deixava os seus créditos por mãos alheias. De todos, talvez seja a maior surpresa porque aquele puto aparvalhado deu lugar a um homem feito com uma mentalidade muito mais cimentada e equilibrada do que alguma vez se poderia pensar. 

- Ildefonso!

O Zé Remígio, mal se viu com o canudo na mão, "fugiu" para o Brasil, onde hoje é o CEO de uma empresa petrolífera. Defender-se da amálgama de sotaques nunca foi fácil para ele. Juntar àquele mix algarvio mais o covilhôco e agora o brasileiro, faz dele um sujeito difícil de compreender nas reuniões da empresa. Nunca casou. Que se saiba, ainda é "fiel" à Andreia.

A Andreia... A Andreia, deu-se mal com o tal namorado que tinha, quando lhe contou o que se estava a passar na Covilhã em torno do que aconteceu com o "Lupas". Numa atitude completamente irracional e infantil, ele interpretou aquilo como uma afronta e calçou-lhe um par de patins. De volta à Covilhã para acabar os estudos, um ano depois, começou a andar com um sujeito que já a conhecia e que tinha a alcunha de "Lupas". Pois. Para gáudio do algarvio e do resto do grupo, a "mulher da sua vida" tinha resolvido enfrentar aqueles abraços e já não passava os fins de semana em reclusão a passar os cadernos a limpo. Vivem os dois em S. Paulo. Não têm filhos. 

- Fonso!!

A Vanessa continua a ser o "avião" que se sabe. Está casada como Ildefonso. Mudaram-se para Madrid, após se terem casado onde ele é correspondente da RTP. Têm uma filha.

- ILDEFONSO!!!! ACORDA! Temos de ir apanhar a camioneta!!

Ildefonso, estremunhado, abriu os olhos. Encontrava-se aninhado num banco do jardim, com a cabeça no colo da Vanessa. Estava a sentir-se um pouco vago. Tudo ainda parecia bastante estranho, quando perguntou:

- Camioneta? Qual camioneta?
- A que nos vai levar ao Covão. Ó Gajo... não acredito que tenhas arroxado dessa forma! Está o resto da malta à nossa espera... Temos de ir! Vá, levanta-te!... Raio de gajo!.. Vamos!! - Ralhava-lhe uma Vanessa que não "parecia a mesma".

Como que ainda meio atordoado por este despertar brusco, tentando alinhar os neurónios, aos poucos se foi apercebendo que tudo não tinha passado de um sonho. A directa do dia anterior tinha feito mossa e ele tinha arrochado ao colo da sua nova amiga. Ainda querendo fixar-se no que tinha sonhado mas ao mesmo tempo enfrentando a inevitabilidade de ter de viver o  presente, sentou-se direito no banco. Depois espreguiçou-se e pôs-se em pé.

- Vá'tão!

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Toma, que é p'ra não seres comilão, seu pecador de gula...

 


O comilão (pecador de gula) foi ao WC. O arsenal de fezes foi tão grande que indiciou um pecado imperdoável e ele desconfiou logo que não ficaria impune. E de facto não ficou: acabou por sofrer a justiça divina mesmo no fim, no momento trivial de limpar o rabo... Se comesse menos, e, principalmente, se não andasse a comer a carne dos inocentes, quer-se dizer, se adotasse a pureza do veganismo, de certeza que a justiça divina não se abateria sobre si e teria a bem aventurança de limpar o rabo ao papel higiénico como fazem as pessoas civilizadas. Assim, quem sabe, vai ter que limpar à gravata, às meias, às cuecas, ou a algum lenço se tiver a sorte de andar de lenço. Cada qual tem o seu karma, os pecados pagam-se na íntegra, se não for cá é lá, no céu ou no inferno, ou onde quer que seja que a nossa alma fique para a eternidade, ou para a reencarnação, se é que isso existe. Tenho um amigo que não acredita na reencarnação mas que, mesmo assim, sempre que vai ao restaurante e o garçon lhe pergunta, “carne ou peixe?”, responde sempre, “carne, Cristo encarnou, não empeixou”. Ora isso há muito que me deixa a pensar se a alma dos peixes encarna ou empeixa, e é mais complicado ainda quando se trata de anfíbios, meios peixe meios animal de terra, esses encarnam, empeixam, ou fazem assim uma coisa intermédia tipo empeicarnação? São estes pensamentos profundos e que exigem aturada meditação que me ocupam normalmente o tempo que passo com as nalgas poisadas na sanita, libertando-me do mal, que sendo mal para mim (por ser repugnante é malcheiroso), é no entanto bem para as plantas que agradecem sempre uma boa dose disso. Com água e estrume governa-se um jardim, e até parece impossível que o cheiro delicado de uma flor possa ter na sua génese algo tão fedorento. 
O karma não é nenhuma balela, existe mesmo. Ainda ontem andei a navegar na net e encontrei montes de casos de pecados pagos em vida, tipo o vilão que no exato momento em que vai pontapear um inocente escorrega (quiçá numa casca de banana, numa poça de óleo, ou num qualquer “vais pagá-las” escorregadio que a justiça divina ali tenha prantado) e cai de costas numa tábua cheia de pregos obrigando-se a um faquirismo doloroso que, como diz o povo, é muito bem feito! Diz o povo que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Perdão não terá, obviamente, um roubo nunca tem perdão, mas lá que é merecido, lá isso é. É como aquela cena do puto que rouba um telemóvel e que quando é abordado por outro que lhe quer fazer o mesmo, “passa para cá o telemóvel”, diz que não tem. O outro até poderia engolir a mentira se naquele preciso momento o telemóvel não desatasse a tocar dentro da sua algibeira. Quem é que ligou?... foi o karma, claro. 
Confesso o meu sadismo quando vejo um mau levar com o murro que ele próprio desferiu, dá-me gozo vê-lo ser vítima do ricochete dos seus atos. Quem goza ou faz mal a alguém que por algum motivo está em inferioridade, merece ser posto no lugar do outro. Abomino a cobardia daqueles que só batem nos mais fracos e se borram todos quando apanham adversário à altura. São desprezíveis, gente dessa dá-me vómitos, haja karma suficiente para todos eles. O mundo está cansado de canalhas, precisam-se homens bons. Homens inteligentes, também. Mas, principalmente, homens bons. Ou, nas palavras de António Lobo Antunes, “temos a mania que a inteligência é a maior virtude, mas a bondade é maior”.
Ainda não percebi muito bem como é que comecei num desgraçado que queria limpar o traseiro e não podia, e acabei a falar de bondade. O princípio e o fim parecem não ter nada a ver, mas se calhar não é bem assim. Se calhar quem esgotou o papel higiénico fê-lo de propósito para que aquele cagão se visse na merda, e isso foi um ato de bondade. De bondade porque aquele cagão é o senhor Pinheiro Laranjeira de Oliveira, e, como o nome indica, o estrume faz-lhe muita falta. Ato de maldade era se lhe tivesse posto uma ratazana dentro da sanita que lhe saltasse às partes e lhe ferrasse nos tomates… 
Quando eu julgava que esta crónica era inútil, eis que fui abordado por João Pomar, um psicólogo que anda a doutorar-se na UBI. João Pomar pediu-me licença para usar um ou outro parágrafo desta crónica na sua tese de doutoramento intitulada “O trauma do WC sem papel”. Claro que acedi sem reservas, “até pode plagiá-la toda que eu consinto”. E disse mais: “se o Pinheiro Laranjeira de Oliveira tem falta de bosta nas raízes, você que é Pomar nem se fala. Esta crónica de merda vem-lhe mesmo a calhar”. Há coisas que parecem inúteis e, vai-se a ver, têm muita utilidade. 

Gondri

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO XIV - O REGRESSO À TERRA

 


Naquele acampamento, o dia "amanheceu" por volta da uma da tarde, muito por culpa da "rave de arrebimba o malho" que se tinha verificado durante quase vinte e quatro horas. Todos "contentinhos da silva", porém a necessitar de retemperar os vigores e índices energéticos que o recolher nas tendas lhes tinham consumido, foram rapidamente tomar uns duches e aliviar as bexigas mais a enxúndia (ou vice versa), a fim de disfarçarem aquele miasma agridoce da tal maratona de depravação em que tinham participado. Os odores eram uma mistura natural de fluidos corporais mais outros que se tinham adicionados, como se todos tivessem participado num Masterchef da queca e sujeitos a todo o tipo de sevícias. 

Os rapazes, amparados uns nos outros, nem menção faziam relativamente a possíveis recordes batidos. "Who cares?" Ao fim de meia dúzia já lhes tinham perdido a conta e nem sequer queriam saber se qualquer uma das outras contavam para cardápio, pois tinham ficado com a sensação que mais não seriam do que tiros de "pólvora seca". 

Já as "Marias", menos despudoradas, trocavam entre si apenas o essencial da informação.

- Acho que tão cedo ele não vai querer olhar para mim, - afirmou a Micaela em tom de gozo -, tirei a barriga de misérias. E adorei.
- Eu acho que ouvi qualquer coisa, - respondeu a Marina, - mas parecia-se mais com um pedido desesperado de ajuda. E tu, Vanessa? Que tal o Fonso?
- Ui... aquele homem tira-me do sério... nunca pensei que fosse tão bom como foi. Nenhum dos outros que tive lhe chega aos calcanhares. O gajo é um expert em qualquer matéria - afirmava exausta - se não era "assim", era "assado", nem que fosse para recuperar forças. Tive de lhe pedir para se calar porque às vezes só de ouvir o timbre da voz dele, fico fora de mim... Ainda tremo só de pensar nisso. Mas acho que ele também não está em bom estado. - Gracejou.
- Parabéns, miúda! - Congratulou-a a Carla - Acho que é desta que vais assentar! Olha... o Osório também se revelou uma grande surpresa. Quem diria... Tal como tu, ainda me sinto meio desequilibrada.
- Estamos todas, - rematou a Marina, - de uma forma ou de outra, estamos todas. Valeu a pena!

Aos poucos, uma ou outra ia revelando um pormenor mais íntimo mas sem grande desenvolvimento. Não que interessasse muito mas nestas coisas há sempre um quê de competitivo e todas apenas queriam garantir algo de diferente no seu parceiro. Mas no cômputo geral, a satisfação e a sensação do dever cumprido imperava na ala feminina. Na masculina, apesar de contida pelo desgaste e das câimbras tomatais, muita euforia ainda reinava por ali.

- A continuar assim, qualquer dia finjo orgasmos... - disse o Alfredo.
- Tu não a aguentas! Parecias um mariquinhas a chamar pela mamã! - Gozou o Dominic - Sim... que eu bem te ouvi a pedir para que a Micas te desse descanso!
- Ehpá... quem diria?? Achava-me preparado para um "avião" daqueles mas nunca contei que aquilo fosse um "caça" topo de gama. A mulher é insaciável.
- Também o que querias? A miúda andou tempo demais a chuchar no dedo. Mais os stresses com o Chico ontem e por toda a confusão que se passou, o primeiro que apanhasse, tinha que levar por conta. Saiu-te a fava...
- Hey... Quem te dera uma fava daquelas! A sério. Estou super satisfeito com ela. A Micas é muito mais que um monte de "sardas e sossego". Tem muita pinta, é muito boa onda. E acabou por ser uma bela surpresa a todos os níveis. Acho que estou a ficar com vontade de não conhecer mais ninguém, - confessou o Alfredo.
- Isso é bom! Também sinto o mesmo pela Vanessa, - reiterou o Ildefonso. - Aquela mulher é um poço de surpresas. E pensar que nunca a tive como atingível dada a imagem que ela passava na UBI. E o melhor, é saber que ela sente o mesmo relativamente a mim...
- Começo a achar que, finalmente, encontrámos as mulheres das nossas vidas. - Atirou o Osório. - Até a Carlita me surpreendeu. O mundo e a vida dão muitas voltas e não posso dar-me por garantido mas é um bom princípio. De uma forma ou de outra, acho que estou muito bem servido com quem estou.
- Isto vai merecer um brinde daqui a bocado, - brincou o Dominic. - Um brinde para que nos encontremos todos daqui a uns anos para recordar este fim de semana.

Após um almoço um pouco à pressa, pois teriam de arrumar tudo para voltar o regresso, foi-se gerando um ambiente tão nostálgico quanto saudosista. Ainda deu tempo para umas fotografias de grupo. Outras em modo emparceirado. Para mais tarde recordar.

No regresso à Covilhã enquanto desciam a serra, quatro casais, todos na mesma zona de bancos, desfrutavam da viagem em silêncio, de cabeças encostadas e com sorrisos apatetados nos rostos. Aquele sol de Inverno começava a dar mostras de desaparecer, como que rematando em beleza aquele fim de semana prolongado que iriam recordar para sempre.

Lembrando-se que havia algo por fazer, o Ildefonso foi à mochila e tirou de lá de dentro um embrulho. Aquilo que a Vanessa lhe tinha dado quando subiram dois dias antes, tinha sido esquecido. Abrindo-o, segurou na mão um íman com uma paisagem serrana que dizia "Um trio perfeito: Tu, eu e a Estrela".

Chegados a casa, arrumaram as trouxas, mudaram de roupa e saíram novamente. O Verdinho esperava-os para mais um fim de tarde, juntamente com o resto dos amigos. A Andreia e o Chico já lá se encontravam. Nem sinal do "Lupas" que sabiam, não iria aparecer. 

Conversa posta em dia, jantaram e recolheram às suas casas. Amanhã havia aulas.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO XIII - UMA NOITE PARA RECORDAR

 


Escusado será explicar-se como é que, quatro gandins e quatro mânfias, acasalados, se comportam, mesmo que em grupo e em espaço adequado, para darem asas à liberdade que não teriam se estivessem lá em baixo na Covilhã. A escalada do deboche, instalou-se de armas e bagagens naquele Covão e só não deu merda porque os poucos campistas que ali coabitavam naquele fim de semana foram-se gradualmente pondo na alheta, até porque já era domingo e alguns tinham de ir à missa. Ora, como ali não há grandes templos para esses cerimoniais, tirando a Senhora da Serra, no final daquela tarde de inverno, o Covão mais o Zêzere, os vidoeiros e a bicharada, estavam todos por conta dos que ficaram.

As checas tinham ido de frosques, quiçá mais moídas e a(ma)ssadas que algum mortal possa imaginar, que nisto o Chico quando entrava em modo de cruzeiro, deixava de ver e ia o resto do  trajecto sempre a abrir. Até o gajo da musica "techno" deve ter achado que estava ali a incomodar e sentiu-se na obrigação de ir fazer uma rave para outro lado. Tirando os putos que chapinhavam no rio, mais os chatos dos pais que os cuidavam, - um estava a dizer que eles não entravam no carro todos molhados e a outra a berrar-lhes que ainda levavam no focinho se se constipassem, - não havia já vivalma. Os estupores dos cães tinham ido farejar para outra freguesia e a turistada de fim de semana, abesbilica com aquilo que mais se parecia com um casting porno em volta de uma fogueira, desaparecia dali como quem acabava de ver o diabo, protegendo os olhares curiosos das suas filhotas em idade dos "porquês" e de outras em idade dos "deixa ver!". Até os filhotes mais afoitos, alguns púberes e outros já com idade para "coisar o coiso & tal", eram corridos à porrada para dentro das viaturas, que isto de estarem a olhar para onde não deviam tinha o seu quê de pernicioso.

Assim que se apanharam livres daquele trio de paus-de-cabeleira, a pouca vergonha e o degredo foram-se instalando à força toda naquele grupelho de grunhos com as hormonas aos saltos e pujanças descaradas. Inicialmente a Marina e o Dominic davam mostras de se conterem para conversar, mas aquele coro gutural mais todos os rituais de acasalamento à desgarrada, adiaram-lhes os intentos e decidiram juntar-se aos vocalizos e demais trinados despudorados. 

Qual Fénix acordada das cinzas do tempo da abstinência prolongada, a Micaela não estava com vontade nenhuma de parar. O desgraçado do Alfredo bem que tentava escapulir-se para fora da tenda, mas o simples acto de a abrir provocava-lhe imediatamente uma "falta de pica", tal a chicotada de frio que se fazia sentir cá fora. Coisa que a sua companheira não permitia e que lhe demonstrava com veemência. Toda a acção naquela tenda tinha contornos de sadomasoquismo e havia alturas em que se ouvia o Alfredo desesperado da vida a pedir clemência mas em vão. Momentos houve em que se acreditava que ele já não conseguiria dizer mais nada a não ser aquilo e que tudo o que lhe saia da boca p'ra fora mais se assemelhava a um reflexo incondicional do que propriamente um pedido encarecido de socorro.

Na tenda da Marina, se calhar por serem mais experientes, a coisa ia decorrendo a outro ritmo, menos apressado, fazendo justiça a um casal que já se entendia naquela matéria há muito tempo. Talvez por isto, a descrição dos seus embates obrigue o leitor a fazer uma paragem, para não cair em monotonia, até porque já não havia nada de novo para contar. De todos, eram os que mais pausas faziam para vir cá fora comer ou beber qualquer coisa, ganhando "stamina" para voltarem à carga logo que pudessem, mas sempre sem mostrarem grande teor de desespero nos apetites. Entre pausas, iam pondo a conversa em dia e resolvendo o problema verificado na noite anterior. O problema é que estas pausas para o cigarro ou o café - ou o que estivesse ali mais à mão - acabavam em redundância no abrigo da tenda deles, pois a melodia sexual no covão era tanta, que até a bicharada ali residente não se calava um minuto e já participava no campeonato.

Na tenda da Carla, a coisa não era muito diferente. Muito por culpa daquele amontoado de carnes, talvez aquilo que melhor seria de salientar, era a cadência e o som produzido quando os dois corpos se encontravam naquele frenesim, dando a sensação que alguém estivesse a bater palmas ou outro tipo de ovações mais efusivas. Durante a tarde e o princípio da noite, o desgraçado do Osório tinha sido passado a ferro umas cinco vezes até que se lembrou de mudar de táctica e investir como a mãe natureza dotou a maior parte dos mamíferos de o fazer. Mesmo "à canzana", como todas aquelas aclamações não paravam e, tentando abafar toda a cantata e opereta que saía das cordas vocais da parceira, viu-se à força convertido ao cristianismo e tratou de tratar a sua donzela em modo missionário. Coisa que não a satisfez de todo e voltou rapidamente ao modo protestante em posição de cowgirl num rodeo.

Já na tenda da Vanessa a coisa piava fino. Tudo o que se passava ali, não era mais do  que uma compilação do "Império dos Sentidos", "As novelas do Decameron", a "Garganta funda", "Sexus", "Plexus" e "Nexus" do Henry Miller, mais as "50 Sombras de Gray" (obra que ainda não tinha nascido) com muitas passagens eróticas e burlescas dos poemas de Bocage à mistura, numa caldeirada sem fim. A festança da noite anterior tinha sido uma brincadeira de crianças comparada com o que se estava a passar ali e agora. Não havia centímetro do corpo que não estivesse a ser explorado à força toda, não havia prática que fosse posta de parte, e neste campo, até a Vanessa já tinha perdido a esquisitice "felaciana" por causa das pregas penianas que o Monge Barnabé tinha à volta do pescoço. Aqueles "rebites" tinham sido já tratados com desvelo e urgências que nem a ela lhe tinham passado pela cabeça ser possível. À custa da brincadeira "já não iam para dentro", sabe-se lá porquê. O Ildefonso, conhecedor de línguas estrangeiras, ia "falando fluentemente" aqui e ali com diversos toques da sua sapiência que deixavam a Vanessa num tal estado que chegou a achar que nem dali a uma semana se conseguia mexer. Quanto a ele, acho que mal se pusesse em pé iria parecer-se com uma velha grávida, tal a forma como se estava a sentir nos quadris. Como se costuma dizer, a fome era negra. E, se bem que ainda ninguém estivesse perto de conseguir esta ausência de cor, iria ser interessante passarem a semana a justificar o porquê de tantos chupões à vista de toda a gente, que chegavam a parecer sarampo.

Como qualquer pessoa que já tenha passado por experiências semelhantes sabe, o tempo voa. Quando lhes deu a fome, foram saindo das tocas como coelhos, com o intuito de comer qualquer coisa, menos cenouras, que já estavam fartos. 

Seriam umas duas da manhã quando se reuniram à volta de uma fogueira, que se tinha extinguido anónima e calmamente, sem fazer barulho para não os incomodar, para comer qualquer coisa e descansar na medida do possível. Todos se encontravam em tal estado de (des)graça que comeram em pé para não correrem riscos desnecessários. Ainda tentaram ir acalmar os ânimos para o rio, mas ao fim de três metros lineares desistiram. Sabiam que o dia seguinte seria o último no acampamento e, quanto muito, seria importante irem descansar. Quanto mais não fosse para conseguirem reunir o valor necessário de quilocalorias para chegar à camionete que os traria de volta a casa. Sem mais delongas, recolheram às tendas e adormeceram.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O JARDIM DOS EXCESSOS - CAPÍTULO XII - E LÁ SE FORAM OS TRÊS

 


À medida que iam avançando, notava-se um especial cuidado em não acicatar mais as coisas. Os três casais formavam um grupo mais animado enquanto que os restantes se encontravam num outro mais introvertido caminhando sem grandes conversas, dando seguimento a um ou outro tema de que viesse a lume. O Chico ainda estava a tentar perceber como é que, por uma questão de horas, muita coisa tinha mudado ali. Ainda não tinha caído em si o suficiente para se convencer que as suas atitudes ao longo daquele dia, poderiam levar a que muita coisa acontecesse. Na sua mentalidade pueril, sentia que o que se passou na tenda de noite, foi uma forma de compensar todos os azares por que tinha passado no resto do dia. Sentia-se, por um lado, farto de levar na tarraquêta por tudo e por nada e, por outro, traído, quer pela Carla, quer pela Micaela. E agora, pelo Alfredo, de quem nunca contaria com tal demonstração de afecto violento. Mas a fim de não se por mais a jeito, decidiu caminhar com eles por forma a tentar esquecer o que quer que fosse. Até a Andreia se comportava de uma forma estranha, nada habitual nela. Equacionou questioná-la sobre o que se estava a passar mas desistiu logo que se lhe ocorreu que poderia levar outra vez nas ventas. Também lhe estava a fazer alguma comichão, o facto da Marina e do Dominic estarem de candeias às avessas, logo aqueles dois que nunca se largavam por um instante.

Decididos a deixar correr o tempo, - tinham já comido qualquer coisa antes de partirem – a caminhada que tinham decidido fazer, estava a ser mais exploratória do que o costume, Tinham decidido subir (e subiram mais do que o esperado) até a alguma lagoa que descobrissem – a dos Cântaros era a mais próxima – e à medida que o iam fazendo, sentiam-se mais longe da confusão desfrutando daquela paz que aquela paisagem oferece.

Chegados ao Covão Cimeiro, deram conta que faltava ali alguém. Não se via vivalma ali ao redor e do Zé Remígio nem rasto. Todos já se tinham apercebido que algo ali não estava de acordo com o costume mas nem se deram ao trabalho de fazer perguntas. Apenas a Andreia, a Marina e o Dominic estavam “minimamente” ao corrente do que se tinha passado na noite anterior e não tinham dado qualquer satisfação aos restantes sobre o assunto, o que criou, desde logo, uma clivagem (ainda mais) acentuada na comitiva.

Alguém sugeriu voltarem para trás, por forma a não deixarem o Zé sozinho no meio daquele acampamento. Houve alguma vontade em se continuar mas ao mesmo tempo algum desconforto por não estarem ali todos. Decidiram dar-lhe mais uns minutos. Depois regressariam à base.

Com vontade de pôr um pouco mais a conversa em dia, tanto a Micas como a Vanessa, decidiram pegar nos respectivos pares e “irem apanhar carqueja” para trás de duas formações rochosas que lhes permitia alguma privacidade. Na sua ingenuidade o Chico prontificou-se a ir ajudar, acto que foi prontamente interrompido pelo Osório.

- Nem penses!!

Um quarto de hora sem sinal do “Lupas” levou-os a voltar. Aqueles quatro tinham-se "fartado de apanhado carqueja" e regressaram para o pé dos outros ainda desgrenhados e com a roupa por compor. Mas mesmo assim, notavam que algo não estava bem nos restantes. Era estranho o Zé não estar com eles. Embora sendo um pouco aluado por causa da paixoneta que nutria pela Andreia, era um bom colega e amigo. Alguém com quem se podia contar a tempo inteiro e com muito bom coração. Aquela ausência teria de ter sido notada há mais tempo.

Sem papas na língua a Carla perguntou à Andreia se ela sabia o que o tinha levado a não vir com eles ou se ele estava mal disposto. A Andreia pouco ou nada respondeu. Mas o Dominic, como que tolhido por dizer o que lhe ia na alma, lá acabou por abrir o livro.

- Temos de parar com a brincadeira. – Começou em tom mais sério - Ontem, o Zé descobriu que a Andreia tem um namorado. Isto já devia ter sido revelado há muito tempo e infelizmente, ele só o soube ontem. É natural que ele esteja a necessitar de algum recolhimento. A culpa disto tudo, nem se pode considerar da Andreia nem dele. Mas nossa, é de certeza. Já podíamos ter posto um travão nesta situação. Fomos bastante injustos para ele e aquilo que nós víamos como um “motivo de brincadeira” passou os limites do admissível.
- Eu podia ter-lhe dito cem vezes que tinha alguém que ele nunca iria acreditar. O gajo é de ideias fixas. Tentei dar-lhe a entender várias vezes que não queria nada com ele porque poderia haver outra pessoa. Ele sempre achou que não era nada sério. Mas quando soube que não passo cá os fins de semana… - confirmou a Andreia.
- Bolas… este fim de semana não está mesmo a dar descanso a ninguém… - continuou o Alfredo – Pelo que conheço dele, é bem capaz de deixar de nos falar durante muito tempo. Quando se chateia, chateia-se mesmo.
- Eu não queria nada disto, acreditem – afirmou a Andreia -  mas ontem quando cheguei à tenda e o vi todo pronto para a acção – “vocês haviam de o ver” – passei-me dos carretos. Nunca pensei que tudo isto chegasse a este ponto. Aquilo que me parecia mais platónico, tornou-o mais real para ele do que o esperado. Ele estava literalmente à minha espera praticamente nu e cheio de apetites…
- Mas não passou disso, certo? Quer dizer… ele tocou-te? – questionou a Micaela, preocupada.
- Não…! Não lhe dei qualquer hipótese. Mal o vi no estado em que estava, aconselhei-o a tirar da cabeça o que quer que ele quisesse fazer porque eu não o faria. Não… nesse aspecto… eu sei que ele não me iria fazer mal. Nem nunca vai fazer. Acho…

O Chico ainda tentou dizer qualquer coisa, mas um olhar do Alfredo, deixou-o com pouca vontade de abrir a boca.

- Miúdo… avisou logo a Carla, que se tinha apercebido deste momento de tensão entre aqueles dois – podias aproveitar o que te resta do fim de semana para pensar no que queres e no que não queres. Precisas urgentemente de uma mudança drástica na tua mentalidade, porque com a que tens, não vais longe. Tiveste uma noite bem passada com aquelas duas, PORQUE te convidaram. Não porque tivesses sido tu a tomar a iniciativa. Tu é que foste a conquista e não elas. Elas é que usaram e abusaram de ti e não o contrário. Agora, foram à vidinha delas e nem te passaram cartão. Por isso, põe essas ideias em ordem e pensa muito bem como é que te vais passar a comportar daqui em diante.

A conversa ficou por ali e o silêncio voltou a imperar no trajecto de regresso ao acampamento. À chegada, do “Lupas” nem pó. No entanto, notaram a falta de uma tenda. Precisamente a dele. Furado numa estaca, encontrava-se uma nota. A Marina foi a primeira a alcançá-la. Leu-a, com alguma comoção.

“Meninos, não se preocupem comigo. Arranjei boleia para a Covilhã. Lamento tudo o que se passou mas neste momento nada faria sentido se permanecesse convosco. Agradecia que nos próximos tempos não me contactassem. Nem em casa nem na UBI. Divirtam-se. Zé”

Ainda debaixo do espectro deste novo estado de coisas, coube à Andreia declarar:

- Bem… sem tenda e com a perspectiva de ir servir de pau de cabeleira numa das vossas, coisa que me recuso a fazer, não tenho outro remédio senão fazer o mesmo.

- Podes dormir na minha se quiseres – avançou o Chico – na mais pura das intenções.

Enquanto o resto do grupo acordava do torpor que uma boca destas tinha provocado, e antes que alguém voltasse a entrar em vias de facto com ele, a Andreia respondeu-lhe.

- Não me leves a mal, Chico. Mas para isso eu preferia ter dado ao Alfredo aquilo que ele quisesse do que dormir uma noite na mesma tenda que tu.

- Bem… o convite foi feito. Na melhor das intenções. Assim fico sozinho novamente e…

Rapidamente, apercebeu-se que sem as amigas checas no acampamento e estando rodeado de quatro casais, a sua noite sozinho seria mais uma para trepar paredes. Não que não estivesse menos “tenso”. Mas apercebeu-se da situação rapidamente e prosseguiu:

- … assim sendo, aproveito a boleia e regresso contigo, pois não fico aqui a fazer nada a não ser número. Desculpem pessoal, mas é melhor assim.

Todos ainda estavam a tentar recuperar do choque provocado pela saída do “Lupas” e já estavam a levar com mais duas desistências. Todos os casais se entreolharam como que questionando o que fazer. Tinham vindo onze. Agora passariam a oito. Quatro casais. Embora se sentissem ressentidos com essa perspectiva também sabiam que isso iria ser sinónimo de menos confusão.

Antevendo estas questões a Andreia afirmou:

- Fiquem. A sério. É melhor para vocês e para todos. Todos vocês precisam de se conhecer melhor e não faz sentido irem todos para baixo cada qual para o seu canto. Amigos na mesma. É justo para todos. Tudo começou com boas intenções mas infelizmente houve muita coisa que correu mal enquanto nós os três estivemos aqui.

Os argumentos da “Sargenta” eram fortes. E até aquela revelação do Chico tinha dado azo a se respirar mais fundo por mais porreiro que ele fosse. O Alfredo dirigiu-se a este e pediu-lhe desculpa pelo soco. Já estava esquecido.

Momentos depois, de mochila às costas e com tudo o que havia para voltar, aqueles dois despediram-se do resto da malta.

- Segunda feira, à mesma hora no sítio do costume!... Divirtam-se!

E com isto, o Chico e a Andreia foram-se afastando para a estrada a fim de apanhar quem os levasse de volta à Covilhã.