Contra o centralismo de Lisboa ubiar, ubiar

Com a consagradíssima Maria João Pires a dar-lhe visibilidade, o centro de artes de Belgais, no distrito de Castelo Branco, é um projecto artístico de nível mundial. Um lugar onde o nascer do sol é mais rico de aromas e texturas, o ar cheira a terra, árvores, arbustos, flores, e em cada gesto há um encontro com a simplicidade. Maria João Pires pôs este lugar bem destacado no mapa e semeou nele o seu génio sem fronteiras. Quando li a notícia do seu regresso, após prolongado exílio no Brasil, exultei de alegria. Não tanto por ela regressar a Portugal com a sua fama atrás, mas porque senti que aquela felicidade estava longe de Lisboa.
A capital é a grande açambarcadora de tudo o que acontece. Mas o meu país não pode ser só isso, o meu país tem uma alma imensa nas planícies e nos montes, uma gente simples que pulsa ao som do cantar dos pássaros e que se embala nas estrelas, à janela, antes de dormir.
Os meus pais nasceram na aldeia da Orca, concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, e eu sinto aquelas terras como minhas. Quando António Guterres foi eleito secretário geral da ONU passei de propósito pelas Donas, ali junto ao Fundão, que é a aldeia dos seus ancestrais e onde ele passava muitos dias de férias. Passei lá com as janelas do carro abertas para respirar o princípio de uma história que engrandece Portugal.
Às vezes passo em Alcains, perto de Castelo Branco, só para ver a fábrica da Dielmar, uma marca de alto prestígio que ousou nascer bem longe do mar. Alcains, terra de Ramalho Eanes, um dos mais ilustres e aclamados presidentes da nossa história, um homem que herdou da terra a integridade e o coração.
Sempre que posso desaguo o olhar na paisagem idílica da barragem da Idanha. O Boom festival, um festival de verão que se realiza na barragem, de dois em dois anos, juntou na sua última edição 30000 pessoas de 150 nacionalidades diferentes. Apesar de ser um evento alternativo, ao jeito dos novos hippies, transporta Idanha-a-Nova pelo mundo.
Poderia relatar muitos mais exemplos da esperança que brota por essa Beira adiante, mas não me vou alongar mais por aí. Talvez me alongasse, digo eu, se esta crónica fosse adiada para daqui a umas semaninhas: com um generoso cacho de cerejas do Fundão, a estalar de bom e a rir para mim, até a escrita ficaria mais doce…
É por dentro que o meu país é belo, e eu quero vê-lo crescer e prosperar. Quero que Lisboa e o litoral se calem, que deem progressivamente a voz aos esquecidos. O tempo da ignorância provinciana, da gente pobre que não tinha acesso a nada, senão ao sofrimento, fecha as suas portas cada vez que alguma coisa importante desponta nas terras do interior. E a coisa mais importante que por aqui aconteceu, erigida pela vontade indomável dos seus pioneiros, é a Universidade da Beira Interior. Aos pés da Estrela, a UBI alinha os seus sonhos para o brilho e para a excelência. Estudar na Ubi não é só aprender, é respirar o orgulho, é resistir, é fazer peito aos betos de Lisboa que acham que a província é uma espécie de coitadinha, que nunca tocará outra música que não seja a dos chocalhos dos rebanhos. A UBI em que ingressei, na altura ainda IUBI, era uma criança pequena, tanto em tamanho como em espírito, brincava-se talvez mais do que se devia como se houvesse ali um estado de exceção, não havia a espera no trânsito, não havia a confusão das avenidas, o ar estava isento do chumbo dos escapes, e eramos tão poucos que nada era tão impessoal como imagino que seja agora, quase quatro décadas depois. O tempo passou e a UBI não parou, estendeu-se em área, em números de alunos, em cursos novos, e é cada vez mais dinâmica e brilhante. Tem condições magníficas para estudar, ar puro, paisagem para esticar os olhos, o sossego que não têm as grandes urbes, instalações invejáveis, além de que, agora que o mundo é uma aldeia global, está tão perto do centro de tudo como qualquer outro lugar. Mas, principalmente, é um farol na afirmação de um Portugal profundo que ainda um dia vai ser o dono disto tudo.
A petulância alfacinha do “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem” irrita-me solenemente. Cada vez que se acende uma luz longe de Lisboa, especialmente nesta Beira Interior que me enche a alma, há qualquer coisa que brilha dentro de mim.

Gondri